Maria Isabel de Ricardo Gonçalves

Maria Isabel de Ricardo Gonçalves
2011
(história real, baseada nas memórias da autora)

De como os pais de Mabel  se conheceram e da origem de seu nome.


Alzira ouviu com desagrado o assobio dos rapazes, ao contrário das primas, que riram, e cochicharam entre si, animadas com a perspectiva de companhia masculina.
A cena passava-se em Buenos Aires. As três moças, beirando os vinte anos, eram gaúchas; as primas, da capital, Alzira, de Alegrete.
- A gordinha é minha – falou alto o mais baixo dos rapazes, que era também o mais gordinho.
Alzira corou, e virou o rosto para o outro lado, ignorando a chegada dos moços. As primas, por outro lado, forma ajeitando as cadeiras, de modo a fazer espaço para os recém chegados.
- Tu és pícara – comentou o gordinho, piscando os olhos, em um murmúrio somente audível para Alzira, que corou de novo.
Estabeleceu-se logo entre os seis um diálogo animado. Os rapazes eram cariocas, em férias.
As moças, como todas as de sua geração, ansiavam por casar-se, única forma viável de sair de casa, em meados do século vinte. Se quisessem estudar, deviam contentar-se com os cursos existentes em suas próprias cidades, e nisto as primas estavam  em vantagem,  ou estariam, pois haviam cessado os estudos ao concluir o colegial.
Alzira não era o que se poderia chamar de bom partido: era gorda, sem beleza e sem dote. Seu pai, entre todos os fazendeiros de Alegrete, era o que estava em pior condição, pois dificuldades econômicas o haviam forçado a vender boa parte de suas terras. Além disso, Alzira tinha um talento peculiar para a ironia, sua língua ferina gostava de sátiras e ditos espirituosos. Imitava com talento vozes, gestos e expressões faciais, o que divertia imensamente suas colegas de classe e desgostava seus professores, e certamente não aumentava sua popularidade junto ao sexo oposto.
Após alguns minutos de conversa, que Alzira aproveitou para desvendar as intenções ocultas de cada grupo sentado nas mesas ao redor, com as mais engraçadas comparações entre o circo e o flerte que pode encontrar, Ricardo Gonçalves, o moço gordinho, repetiu com satisfação:
- És mesmo pícara, e vou-me casar contigo.
Alzira, moça prática, engasgou. Olhou de soslaio para o rapaz, mantendo-se séria até o final da tarde.
Ricardo era simpático, tinha a pele clara, sem manchas, e, nos olhos claros, a centelha de inteligência que revela um intelecto superior, tão rara nos rapazes de Alegrete.
Ora, Alzira queria casar-se, quando não por outro motivo, porque gostava de crianças e queria ter seus ricos guris. Em Alegrete, nenhum dos companheiros de infância tocara seu coração; além disso, havia a questão do malfadado dote. Ricardo era advogado, bacharel recém formado, porém com perspectivas de um salário não muito ruim. Sua estatura baixa não era empecilho, pois não era mais baixo que Alzira, e, mesmo que fosse, não seria este um defeito tão problemático quanto um espírito obtuso ou uma queda pelo álcool. Sua conversa era atraente, revelando o hábito da leitura e o gosto pelas atividades culturais. Ele respondia rápido aos comentários de Alzira, percebendo imediatamente as entrelinhas de suas insinuações maliciosas. Quando ele solicitou seu telefone, Alzira respondeu que não dava seu número a estranhos, ao que ele retrucou que seria fácil localizar um nome no catálogo telefônico.
O fim de semana foi agitado, os seis jovens usufruíram da agradável companhia uns dos outros em passeios, refeições, espetáculos, sorvetes, até mesmo compras. Ao findar o domingo, todos lamentaram que o Rio de Janeiro fosse tão distante do Rio Grande, exceto Alzira.
Duas semanas depois, seu pai entrava em casa com Ricardo ao lado, vindo para solicitar a mão de Alzira em casamento. Em seis meses estavam casados e Alzira embarcou para o Rio de Janeiro, para espanto e inveja das primas.
A primeira filha do casal chamou-se Maria Isabel, nome escolhido por Ricardo em homenagem a sua avó materna. Se fosse menino, seria Rodrigo, nome do personagem preferido de Alzira em O Tempo e O Vento, romance gaúcho muito em voga na época.
Ora, ao voltar do cartório, Ricardo mostrou a Alzira a certidão da criança: Maria Isabel de Ricardo Gonçalves.
- Mas o que é isto? E o meu sobrenome?
- É minha filha – explicou o orgulhoso pai – por isso é Maria Isabel de Ricardo Gonçalves.
- É minha filha também. Que loucura é esta, homem? Como se a guria fosse assim uma espécie de propriedade tua?
Mas a discussão ficou por aí. Uma enfermeira entrou avisando que a pequenina sofrera uma convulsão súbita e acabara de falecer.
Sete anos depois Alzira concebeu novamente. Esta sua gravidez foi toda cercada de atenções especiais: comida, a mais saudável possível; consultas, com o melhor obstetra da cidade; nenhuma contrariedade. Ricardo vinha para casa cedo para garantir o sono tranqüilo da esposa. O casal, que convivera sete anos em harmonia, nunca estivera tão afetivamente unido como então, até o dia do nascimento da nova garotinha, que recebeu, como a primeira, o nome de Maira Isabel.
Maria Isabel de Ricardo Gonçalves.
- De novo esta maluquice? – explodiu Alzira, furiosa. – De novo este maluco do meu marido excluiu meu sobrenome do nome de minha filha!
- Amada minha, será mesmo necessário discutir por este pequeno detalhe? Afinal, eu vou cuidar desta criança com a maior dedicação, carinho e respeito; vou desdobrar-me em cuidados para garantir a ela a melhor educação possível e continuarei a fazer o que estiver a meu alcance para ser o mais atencioso dos maridos. Não basta para você? – dizendo isto, Ricardo deixou o quarto. Quando ele retornou, ao final da tarde, Alzira não tocou no assunto nome, convencida de que o mal já estava mesmo feito, e havia coisas bem mais importantes do que este capricho inexplicável do marido. Ela tinha em mãos um bebe saudável; eram um casal feliz por ter um recém nascido vivo, após a morte da primeira e mais sete anos de espera.  Alzira, sendo uma mulher sensata, escolheu valorizar as atitudes positivas de seu marido, dando de ombros para sua original vaidade.
Anos mais tarde, quando Mabel perguntou aos pais pelo seu nome singular, e descobriu que era, em realidade, homônima da falecida irmã, comentou:
- Bizarro.
Prática como sua mãe, Mabel não deu maiores atenções ao fato. Quando indagada pelos colegas a respeito de seu sobrenome, apenas dava de ombros e comentava:
- Isto é coisa lá do meu papai.
De como a autora decidiu escrever o primeiro capítulo.
Recentemente eu estava lendo as anotações que fez Monteiro Lobato na cadeia, sobre um novo romance que pretendia escrever, suprimindo todas as passagens que os leitores normalmente pulam. Genial, não é mesmo? Bem, talvez eu faça isto, mas, primeiro, terei de escrever todo o texto, entregá-lo para vários leitores, e pedir que marquem aqueles trechos que acharam redundantes e então, cortá-los do original. Mas eu estava me referindo ao primeiro capítulo, não é mesmo? Voltemos, pois, ao tema.
Pois existem varias maneiras de escrever-se uma história, sendo o processo todo, é claro, exatamente igual: você escreve a primeira letra e a última. No meio, recheia-se o texto com palavras. É claro, esta frase é uma variação do dito de Pablo Neruda: Escrever é fácil: você começa com maiúscula e termina com um ponto final.O fato é que, nesta história em particular, minha opinião: conhecer a personalidade dos pais é fundamental para entender a personagem principal. E a maneira como eles mesmos contam como se conheceram foi, pelo menos para mim, bastante reveladora.
Isto posto, podemos voltar a nossa história.

Dos primeiros anos da herdeira de Ricardo Gonçalves, sua singular educação e uma lacuna em sua formação, a não socialização com seus iguais.

Mabel não teve uma infância normal. Para começar, não teve contato com seus parentes.
Ricardo sofreu sérios reveses financeiros, e recebeu uma boa proposta de trabalho, em Buenos Aires. Assim sendo, Ricardo e Alzira foram morar na Argentina, com a filhinha recém-nascida, e aí permaneceram por oito anos, morando em um hotel.
Para a família, tal arranjo era justificado por ser uma situação provisória, mas, na realidade, vinha de encontro ao nenhum apego de Alzira para as tarefas domésticas.  De fato, durante os primeiros anos de casada, Alzira queimava regularmente a comida, bem com as camisas do marido, exibindo um rosto sulcado por culpadas lágrimas quando este chegava do serviço e encontrava o desastre consumado. Após algumas semanas, Ricardo optou por comerem fora todos os dias e contratou uma criada por meio período, para a execução das pequenas e enfadonhas tarefas domésticas, o mesmo arranjo que utilizara em solteiro, já que o que realmente lhe importava era ver o rostinho de sua amada esposa risonho e seu humor, o mais satisfeito possível.
Voltemos a Maria Isabel, a segunda.
A garotinha era muito bem tratada, costumava adormecer cedo, e seus pais tinham o hábito de deixá-la sozinha no quarto enquanto desciam para jantar, no próprio hotel. As camareiras do andar, sabedoras do arranjo, evitavam falar alto nos corredores para poupar o sono da criança, e até empurravam seus carrinhos mais delicadamente neste horário. Esta fórmula não apresentou nenhum problema durante os quatro primeiros anos. Então, em uma particular noite, um choro forte, ou melhor, um berreiro infernal alarmou a todos. Chamados às pressas, Ricardo e Alzira encontraram uma assustada menininha, em prantos, chamando por papai e mamãe. A partir de então, a garotinha passou a jantar mais tarde, em companhia dos pais, que até se aventuravam a comer em outros restaurantes, para grande alegria da menina.
Alzira, que estudara para ser professora, embora nunca houvesse exercido a profissão, ensinava à filha tudo o que poderia ser ensinado em uma pré-escola e até mais, pois aos quatro anos Mabel lia perfeitamente e ensaiava escrever as primeiras letras; sabendo também declamar de cor várias poesias e pequenas histórias que sua mamãe lhe ensinava. Não tendo mais o que fazer, nem amigas a visitar, e, gostando imensamente de sua profissão e de sua filha, Alzira fez um excelente trabalho com a menininha.
Este singular casal, centrado em si mesmo, parecia não fazer a menor questão de freqüentar grupos de amigos, e não se preocupava com o fato de a filha não ter companhia para brincar. Não viam nenhuma vantagem em fazer amizade com portenhos, nem queriam que a garota convivesse com crianças que não falassem português.
Quando voltaram ao Brasil, desta vez instalando-se na cidade de Santos, estado de São Paulo, onde também não tinham nenhum conhecido, mas onde havia excelente perspectiva de ganho financeiro para Ricardo, procuraram casa no melhor ponto da cidade, o bairro chamado Gonzaga, e, é claro, na orla da praia, pois, na opinião de Alzira, e seu marido concordava com ela, aparência é o princípio de tudo,
Como Ricardo não estivesse assim tão bem de finanças, procuraram sem sucesso uma boa casa nestas condições. Como Alzira não abrisse mão do bairro, entre uma boa casa na periferia e um pequeno apartamento no Gonzaga, ficaram com este último. Não podendo arcar com um condomínio alto na orla da praia, conseguiram um prédio a duas quadras da praia, de onde, da sacada, por uma fresta entre dois prédios em frente, podia-se ver uma faixa da praia. Era o bastante para satisfazer o critério de sinceridade de Alzira. Agora ela poderia dizer, tanto para a família quanto para as outras mães da escola da filha, que, de sua residência no Gonzaga, podia-se ver a praia. Que esta residência fosse um apartamento de um quarto, e que a vista limitava-se a uma nesga da paisagem, eram detalhes que Alzira não precisava comentar, e, neste sentido, instruiu igualmente a filha.
No apartamento realmente minúsculo, a cozinha mal comportava um fogão e uma geladeira; colocaram uma boa mesa de refeições, com quatro lugares, na sala. Para complementar, em frente ao móvel da televisão, um sofá cama, que, à noite, se transformava na caminha da filha.
Um varal, acoplado à mini cozinha, recebia o apelido de área de serviço, porém as roupas da família eram enviadas semanalmente para uma lavanderia. Desta forma, o aprendizado das prendas domésticas não fez parte da educação desta particular moça de boa família. Uma faxineira vinha uma vez por semana limpar o minúsculo ‘apertamento’, cujo local mais freqüentado, era a varanda, pois ali recebiam ar fresco, sol e notícias das vizinhanças, sendo a espionagem o passatempo preferido de Alzira.
Mabel foi admitida em uma escola, passando com louvor no exame de admissão.
A escola, como pesquisaram os pais, era a mais conceituada escola para moças de boa família da cidade.
Ora, na escola, Mabel imediatamente afeiçoou-se a uma garotinha, com quem passava todos os momentos livres, brincando juntas antes e depois das aulas, dividindo os lanches no recreio, estudando juntas para as provas, chamando-se uma à outra de minha melhor amiga, até o dia em que Ricardo descobriu que seu nome não era Ana, como pronunciava Mabel, e sim, Hannah. Sim, a garotinha era judia. E daí?
Bem, daí, Mabel não entendia o porquê, nem Alzira, esta amizade era impensável. Tendo se manifestado contra este relacionamento, Ricardo foi ao colégio pedir a imediata expulsão de Hannah, no que, evidentemente, não foi atendido. O pior, para Mabel, é que todas as colegas da classe ficaram sabendo da história, começando a chamá-la de nazista, fosse lá isto o que fosse. Pesquisando, Mabel aprendeu muita coisa sobre alemães e um conflito mundial chamado segunda guerra, Hitler e outras barbaridades mais. O que não fazia nenhum sentido, pois ela era brasileira, e seu pai nem era alemão!
O fato é que Ricardo retirou a filha da escola e matriculou-a em outra, a segunda melhor escola de Santos para moças de boa família, com a devida recomendação de que, dali por diante, escolhesse com mais cuidado suas amizades.
Em lágrimas, Mabel despediu-se de sua melhor amiga e passou a odiar o pai.

Uma personagem secundária
Havia uma curiosidade na vida de Ricardo. Uma ex-vizinha.
Chamava-se Fátima e nutria grande admiração pelo rapaz, desde a infância.
Possivelmente vivera a fantasia de namorar e casar com o amigo da porta ao lado, pois era companheira para todos os folguedos, bailes, cinemas, fosse qual fosse o passeio para o qual Ricardo a convidasse. E Ricardo, baixinho, gordinho, feioso e sociável, levava a vizinha como companhia para muitos lugares. Nunca falara em namoro, eram amigos desde a infância e, talvez, pela mente dele, houvesse algum dia passado a possibilidade de esposá-la, caso não aparecesse ninguém melhor, mantinha-a assim com um trunfo.
Como Alzira apareceu, Ricardo convidou Fátima para o casamento, fingindo não perceber as marcas de lagrimas no rosto da vizinha, e até mesmo brincando com a possibilidade de o próximo casamento ser o dela.
Fátima sempre manteve-se em contato, ao menos nos natais em que o casal comparecia para visitar os pais dele. Alzira fingia não notar o amor recolhido, já que o marido não tocava no assunto, e, conhecedora de caracteres, logo viu que, da honestíssima e bondosa Fátima, não correria risco nenhum.
Quando Maria Helena, a segunda, foi batizada, Ricardo propôs que convidassem Fátima para madrinha da criança, com o que Alzira concordou. E Fátima mudou-se para São Paulo quando a família Gonçalves radicou-se em Santos. Para gerir os negócios do falecido pai, dizia.
Alzira fingiu acreditar no pretenso motivo da mudança, mas, prudente, não permitiu maiores intimidades.
O contato de Mabel com esta madrinha era deveras singular. Todos os anos, por ocasião do Natal, havia a visita anual – Fátima vinha a Santos ou a família subia, em anos alternados.
Quando Mabel fez quinze anos, passou a subir a serra sozinha e a levar os presentes da família para a madrinha, e vice-versa. Esperta, logo percebeu, nas entrelinhas das recordações, o amor recolhido da solteirona pelo seu pai. Achava a historia toda bizarra, e dava de ombros.
Muitos anos mais tarde, quando Alzira faleceu, a Mabel já beirava os trinta, após um ano de luto, Ricardo casou-se com Fátima.
Mabel recebeu bem a notícia. A madrinha sempre a tratara bem, e, afinal, merecia sua tardia felicidade, após tantos anos de espera.
A atitude do pai, porém, tendo feito a pobre moça apaixonada de regra três, da adolescência à maturidade, mesmo em presença e com o consentimento da esposa, não melhorou o rancor que a filha sentia por ele. Apenas confirmou sua opinião de ter como pai um maluco autoritário.

 Dúvidas do autor sobre a melhor maneira de como terminar este romance, pois, sendo o autor também enxadrista, sabe que no primeiro lance, já está contida a semente da vitória – ou da derrota – enfim, o final, qualquer que seja ele.

Li certa vez em um livro de Mark Twain, creio que foi em As aventuras de Tom Sawer, que o autor deve saber o momento de encerrar sua história, o que acontece, na maioria dos romances, com o casamento, e, quando se trata de crianças, em algum momento marcante, antes da adolescência.
Como a historia de Mabel se propõe a ser um estudo de personalidades, sendo Mabel mulher, e  romântica, eu poderia  adotar o critério casamento para finalizar este relato. Pois, em uma história, o casamento, quando não expressa a consumação de uma paixão, ao menos esclarece outro objetivo prático sobre o qual a sociedade finge não dar importância, qual seja o de estabelecer uma posição social para a mulher.
Porem, sendo Maria Isabel fruto do século vinte, filha de pais inteligentes, educada por uma mãe que a orientou  para a autonomia e não para o parasitismo, talvez eu prolongue um pouquinho mais a história, para esclarecer a correta perspectiva de vida desta singular figura feminina, cuja trajetória pelo planeta colidiu com a minha de forma significativa.

As estratégias de vida de Mabel.

Maria Isabel lia muito. Surpreendeu as professoras do colégio com suas notas altas, apesar de sua formação não ortodoxa – lembremos que, naquela época, não havia a possibilidade de educação em casa, supervisionada pelo estado, como hoje.
Meus melhores amigos são os livros, dizia ela, com medo de envolver-se em amizades que pudessem desgostar o maluco do pai. Assim, ao atingir a idade em que lhe foi permitido sair à rua desacompanhada, saía de casa sozinha, encontrando os amigos em algum outro lugar, previamente combinado, longe dos olhos curiosos dos genitores.
Maria Isabel não gostava de perder. E não queria tornar a perder pessoas importantes como amigos. Assim, não falava de suas relações com os pais, não convidava pessoas para sua casa, exceto em seus aniversários, quando convidava toda a classe, para que o pai não pudesse saber quais suas companheiras preferidas, que, por sinal, eram relegadas a segundo plano tão logo ultrapassavam a soleira da porta. Mas como Mabel as avisava antes do problema ‘o maluco do meu pai ciumento que não quer me dividir com meus amigos’, as amigas sorriam, e compartilhavam do jogo.
Mabel percebeu logo cedo que autonomia era decorrência de independência financeira, ou, em palavras mais simples, se uma pessoa tem dinheiro suficiente para se manter, é livre para viver do jeito que preferir, caso contrário, tem de ceder aos desejos dos outros, dos que a sustentam.
Assim, ela resolver ter uma profissão que lhe permitisse ganhar bastante dinheiro, para viver com razoável conforto. Herdara da mãe o gosto pelo luxo, e, do pai, a vontade de comandar. Como tinha bom coração, e se importava com as outras pessoas, escolheu medicina, profissão instigante o suficiente para manter sua mente ocupada, não caindo na monotonia de outras profissões não intelectuais.
Maria Isabel não era fútil, nem superficial, nem preguiçosa. Vaidosa, sim, mas nada exagerado. Gostava de boas roupas, cuidava de sua aparência, acreditando que a beleza interior contava, sim, mais que a exterior, e jamais participaria de desfiles de modas ou ensaios fotográficos, nem planejava ser incluída nas colunas sociais dos jornais da cidade, como muitas de suas colegas. Ria de coisas como nome de família e árvore genealógica, mas ria por dentro, sabendo muito bem da importância de não ferir os sentimentos de gente importante como os pais de suas colegas de classe, que, no futuro, talvez pudessem destruir sua carreira com um comentário idiota sobre aquela garota arrogante que estudou com minha filha... ou coisa que o valha. Mabel aprendera muito bem com a mãe a cultivar as aparências, mesmo que não acreditasse nelas. Há gente que valoriza as aparências e uma pessoa socialmente inteligente pode tirar proveito deste fato simples. Ponto.
Houvera o exemplo, muito elucidativo, do médico do governador do estado, consultado por muitos socialites da época simplesmente porque era chique ser cliente do mesmo médico que o governador. Pois bem, um belo dia, o sujeito se envolveu em uma morte por imperícia, e descobriu-se – pasmem – que o camarada não tinha diploma de medicina nem de cosia nenhuma, era mesmo um descarado charlatão! Ah, a cara de bobo do governador, a cara de bobos de todos aqueles socialites... Bem, se uma pessoa aparenta ser importante, os ricos e poderosos vão responder à sua aparência, e tratar esta pessoa como se importante fosse. Claro, se a pessoa em questão estiver respaldada por um diploma, for inteligente, enfim, se além de parecer, for importante, melhor. Agora, se a pessoa, sendo sumidade em qualquer assunto, for também humilde, estará ferrada, como se dizia na gíria da época, poderá até ganhar o Nobel, mas não receberá convites que a coloquem em contato com pessoas influentes.
Assim fica esclarecido que Mabel acreditava em metas e em sucesso programado. Entrou no jogo da vida para vencer, o que, para ela, significava ganhar sua própria liberdade, após os dezoito anos, com um diploma que lhe garantisse a subsistência e uma profissão que lhe garantisse uma posição social importante. Daí a poder escolher amigos e marido, era conseqüência. De quebra, viagens, dinheiro, poder, não sendo o objetivo principal, constituíam vantagens adicionais a serem devidamente apreciadas. Respeito próprio adivinha do fato de ter escolhido uma atividade útil.

Mabel passa no vestibular e inicia sua vida adulta.

Na escola, Mabel fez amizades superficiais. Resguardava-se.
Como tinha bom coração e grande senso de humor, cativava as colegas e alguns professores. Enlouquecia a professora de matemática com o hábito de resolver os problemas por soluções não ortodoxas. Divertia-se a torturar a professora de francês fingindo não ter entendido o significado das palavras, pois a mestra recusava-se a falar uma vírgula que fosse em português. Ficou famosa no colégio, sendo contada para as turmas posteriores, a cena em que a professora de francês, desesperada, quase em prantos, jogou um giz ao chão e pôs-se a sapatear em cima do toco, gritando: ‘c’est ça écraser!’ Dali por diante a professora ganhou o inevitável apelido de ‘madame écraser’.
Ao entrar na faculdade, que alegria descobrir que Elenice também vencera a corrida ao vestibular. Elenice, uma das mais ricas gurias da classe, cujo pai fez uma doação generosa para a fundação Lusíada, ganhou fama de compradora de vaga, crença infundada, pois a garota tinha mérito.
Sendo culta, Elenice tinha o respeito de Mabel garantido, e, com alegria, continuaram a estudar juntas na biblioteca da faculdade.
No primeiro dia de aula, Mabel ganhou o apelido de Vaca Louca, nome de caloura, por causa dos óculos de aro grosso e da pilha de livros que carregava já no primeiro dia.
Era um costume do vestibular atribuir apelidos aos calouros, assim, o menor rapaz era Timo, a menor guria Menarca, e assim por diante.
No primeiro dia de aula, também, aconteceram muitas coisas definitivas. Alguns casamentos à primeira vista, por exemplo.
Elenice foi o primeiro caso. Um rapaz de olhos verdes e corpo de manequim, o Maurício, aproximou-se dela declarando suas sérias intenções. Durante muitos meses estudaram juntos, circularam juntos, finalmente namoraram firme por oito longos anos e casaram-se após o término da residência medica. Mas o primeiro olhar, a primeira aproximação, foi já em caráter definitivo, o que divertiu Elenice e a amiga Mabel por meses, até Elenice sucumbir aos encantos e à persistência do rapaz.
Outra moça, baixinha, a Selma, recebeu do menor aluno da classe uma abordagem que achou inadequada:
- Ora, rapaz, saia daqui, este espaço é para os universitários.
- E o que pensa que eu sou?
- Você? Não brinca. Você deve ter uns quatorze.
- Tenho dezessete e passei no vestibular, estou na mesma classe que você.
Este casal começou a namorar no último ano de curso, após cinco longos e pacientes anos de cerco pelo rapaz baixinho e magrinho. Cerco que começara no primeiro dia de aula, e não esfriou, apesar do balde de água fria recebido, ou até tenha se intensificado pela rejeição inicial.
O caso mais estranho foi, sem dúvida, o de Janete. Abordada pelo grandalhão gordo de voz sonora apelidado de Boca, respondeu indignada:
- Caia fora, estou noiva, vou-me casar no fim do ano.
- Você vai-se casar é comigo.
- Ora, que atrevimento! – respondeu Janete.
A frágil Janete, de frágil só tinha mesmo a aparência. Sua alma era corajosa e decidida.
Submetera-se ao vestibular contra a vontade dos pais, discutira com a mãe na semana da matrícula, sendo expulsa de casa sem nada além das roupas e documentos, procurando apoio em uma avó, que a patrocinou e recolheu.
- Ora, a maluquice de minha mãe não vai-me impedir de ter minha carreira. Ela alega que eu deveria casar-me e ficar em casa!
Bom que ela não tivesse se deixado convencer pelos pais, pois o noivo de Janete envolveu-se com outra moça, a quem engravidou, e com quem se casou quase que imediatamente. Janete, chorosa, chocada, andava de olhos vermelhos pelos corredores da faculdade, quando tropeçou no Boca, lenço de papel em punho:
- Quer desabafar? Você precisa é sair e conversar com outras pessoas para se recuperar deste golpe.
E ele foi o ombro amigo de que ela precisava. Sem forçar a situação, ele permaneceu sempre por perto, no grupo de estudos dela, até o dia em que ela decidiu-se a permitir uma aproximação. Casaram-se também após sete anos de namoro, e ele dizia sempre, piscando o olho para ela:
- Eu não disse que você ia se casar era comigo?
Estas eram as principais amigas de Mabel, com quem ela se manteve em contato intimo pelos longos seis anos de curso.
Quando aos rapazes, já no primeiro dia, sucumbia aos olhares de um tal de Daniel ... Zalc.
O sobrenome dele a esfriou. Judeu? Sim, confirmou ele, judeu polonês, mas não do tipo que se desculpa pelo sabá para bolar aulas no sábado, e sim o tipo mais normal...
Mabel não estava mais escutando. Ouvia era a voz do pai: judeus poloneses são os piores, os mais pobres, e sem instrução.
Claro que sem instrução não era o caso ali, mas Mabel precisava arrumar uma rápida abordagem, e o destino veio em seu auxilio, pois havia um outro Daniel na classe, primo de uma ex-colega de escola, do qual ela tratou de aproximar-se, e até levar em casa para apresentar ao pai, assim, se falasse algo, ou se alguém a visse com Daniel, o rapaz sempre poderia ser confundido com o outro Daniel, o não judeu.
Ah, que vida difícil a da mulheres vigiadas!
O fato é que houve bailes, piqueniques, domingos nas praias, pequenas excursões até São Paulo e muitos momentos felizes no primeiro ano de faculdade.
Em frente a seu prédio, havia algumas repúblicas de estudantes, e ela e a mãe observavam, da varanda, o vai e vem dos carros. As duas sabiam quem dormia em casa, quem chegava pela madrugada, quem aparecia para visitar quem. Mabel herdara da mãe o dom, comum em mulheres, de memorizar mesmo com olhares oblíquos, números variados – placas de carros, telefones, identidades.
Á noite, com as luzes apagadas, principalmente no verão, quando dormia deitava na varanda, observava a vida noturna dos colegas.  Assim sabia quem eram as garotas modernas ou levianas, segundo o ponto de vista, de sua classe.
Havia, por exemplo, a mineirinha, com sete irmãos, que precisava trabalhar para completar o dinheiro de seus gastos, e que, em classe, nem passava por perto do rapaz com quem passava bom número de noites.
Selma divertiu-se ao descobrir, através de outro rapaz, que ele se locomovia de carona ou de ônibus, para que Mabel e a mãe pensassem que ele estava em casa – ou elas poderiam ir fofocar com os parentes dele, que conheciam, pois ele bem percebia a manobra de espiar por entre as persianas fechadas ou por detrás das janelas...
Mabel, dedicada aos estudos, pensava não ter o que temer por sua liberdade, sabiamente usada, pois não tinha curiosidade nenhuma a respeito das atividades noturnas da cidade. E seu namorico com Daniel, o Zalc, por enquanto era nada mais que confidências inocentes e olhares carinhosos.
Até que percebeu não poder contar com a mãe.
Foi em uma tarde em que Selma e Janete foram lanchar com ela, após o cinema. Alzira ficara ouvindo atrás da porta – aliás, em um apartamento tão pequeno, impossível seria não ouvir os risos altos e alegres da mocidade.
- Tu estás de namoro com um judeu – disse a mãe.
- Não – disse Mabel, surpresa.
- Pois prefiro que evites este tipo. Para evitar problemas com teu pai.
- Mãe, é um amigo.
- Judeu.
Mabel não compreendia a atitude da mãe.
Mesmo que ela, Mabel, fosse apaixonada por um homem, não perderia o bom senso e jamais apoiaria um marido em erro, acreditava. Compreendia que a mãe amasse o pai. Mas a mãe tinha seu próprio cérebro, não? Como a mãe podia apoiar este anti-semitismo de seu pai?

De como um trisavô bruxo e um prego acabaram com um namoro incipiente.


Zalc estava feliz. Gênio, encontrara uma moça praticamente tão inteligente quanto ele próprio, com quem passava horas trocando idéias sobre todos os assuntos médicos e leigos.
Zalc morava com um rapaz de origem italiana, de barba loira, muito atrapalhado e desleixado, com quem gostava de estudar para descansar o espírito. Genovês, era o apelido do amigo, tocava violão e sabia tantas músicas quanto ignorava os vernáculos médicos. Um falava de estudos, outro cantava; a cigarra e a formiga, união perfeita. Zalc inventava fórmulas mnemônicas para ajudar o amigo, que o divertia com chistes, piadas e canções.
Os dois rapazes saíam juntos com freqüência e buscavam amizades com as garotas que moravam na cidade, aproximando-se desta forma, também, dos pais.
Um rapaz que é bem recebido na casa das famílias sempre tem vantagens, em assuntos amorosos, dizia Daniel, sempre correto em suas afeições.
Por isso, para ele, foi uma surpresa descobrir que Mabel nunca o convidava para ir ao seu apartamento.
-  Meus pais não gostam de visitas – dizia ela.
- No entanto, tanta gente vai ao seu apartamento até mesmo o Daniel Ri...
- Não é verdade, não invente coisas – irritara-se Mabel. Como poderia dizer ao tolo que o outro Daniel, criatura fútil e tola, só viera a sua casa com a finalidade de driblar a vigilância do pai?
O fato é que ficaram agastados, e, certa noite de sexta-feira, resolvendo a turma ouvir música e comer peixe na praia do Perequê, Mabel quis usar o disfarce a seu favor. Disse ao pai que a amiga Selma ia com Daniel jantar e a convidara para ir junto.
- A três? Vais de vela? – perguntou Alzira.
Mabel explicou que outras pessoas da turma iam, Janete, o Genovês... ai, por que falou do genovês?
- Ah, o Daniel de que tu falas é o Zalc...
- Por favor, mãe...
Mas a mãe estava ao lado do pai. Quando Selma chegou, Mabel não pode sair.
- Sobe aqui e tenta convencer meu pai, Selma -  pediu Mabel – diz que Janete está com vocês, e todos os outros nomes de que se lembrar, menos Zalc e Daniel, está bem?
Porém, o acaso estragou o plano. Não havia lugar para estacionar, Selma demorava a descer, então o Genovês foi dar um giro com o carro e Zalc resolveu subir e apressar as amigas. Foi só Mabel abrir a porta que o pai já estava atrás dela, observando os cabelos vermelhos e o nariz adunco do rapaz.
- Judeu! – disse ele, com uma voz áspera e desagradável. – De que região é sua família?
Mabel e Selma se entreolharam, assustadas.
- Ah, bem que eu suspeitava – falou Alzira – ela estava escondendo de nós este rapaz.
Zalc, surpreso, gaguejava, pálido.
- Minha filha está proibida de sair com você – disse Ricardo, empurrando Selma para fora da sala – Selma, por favor, vá embora. Isto é assunto de família.
No elevador, Selma esclareceu Zalc dos sentimentos anti-semitas do pai de Mabel.
- A guerra acabou há mais de quarenta anos – exclamou o rapaz – ainda existe gente maluca assim?
- Se existe, o cara nem é descendente de alemão nem nada... Vamos ao nosso passeio, não podemos fazer nada pela Mabel.
‘Nem por mim’, pensou o rapaz.
Dentro do apartamento, Mabel enfrentava o pai:
- Sou maior de idade, você não pode me impedir de passear nem pode me proibir de fazer amizade com quem eu quiser.
- Não posso, claro. – disse friamente o pai – Mas já lhe dei instrução e não sou obrigado por lei a lhe pagar faculdade. Se quer fazer o que quiser de sua vida, eu não lhe pago mais os estudos. Você é livre para arrumar trabalho onde puder e pagar suas próprias contas.
Mabel olhou para a mãe, mas não encontrou amparo. A mãe concordou com o pai.
- Você deve obedecer a seu pai, querida, afinal, o que ele lhe pede é tão pouco, apenas que você não faça amizade com judeus. Nem namore com um deles.
Pálida, Mabel calou-se e trancou-se em seu quarto, presa de intensas emoções.
Chorou. Chorou muito.
Pensando em todas as semanas felizes que passara sonhando com o amor incipiente, relembrando as doces conversas, os risos e as tardes agradáveis em companhia do Daniel, acobertada por Selma, que sempre a acompanhava até a esquina da casa, quando se separavam, após enganarem os olhos vigilantes de Alzira, e pelo nome do outro Daniel, totalmente ignorante do papel a que se prestava.
Pegou então um papel e começou a rascunhar seu relacionamento em versos livres:

Eu. Você. Eu e você.
Nós.
Você e eu.
Você.
VOCÊ.
Eu – e somente eu.
Mabel, pensando na expulsão covarde, desejava que o rapaz a tivesse defendido, lutado por ela. Talvez para ele o caso fosse apenas um namorico inconseqüente, e, para ela, fosse o início de um relacionamento fixo e eterno. Erro de calculo. Homens são diferentes de mulheres, afinal.
Confusa e magoada, ela pegou uma foto que Daniel lhe dera, escondida e bem escondida dentro de sua carteira de cinema. Procurou um prego, que se desatarraxara do pé do guarda roupa naquela tarde e deveria ainda estar por ali, achando-o, mirou no centro da testa do retrato e furou o papel com força. Olhou para o relógio: dez e meia da noite, passando um pouquinho.
O que Mabel não sabia, e ficou sabendo no dia seguinte pela amiga, é que, exatamente às dez e meia, passando um pouquinho, a turma chegara ao Perequê, estacionara e estava entrando em uma das barraquinhas de pescadores. Daniel, sendo o mais alto da turma, geralmente se abaixava para passar pela porta, mas, neste dia, talvez por estar chateado, entrou de cabeça baixa, sem olhar, e – pumba! - bateu a cabeça em um prego que estava espetado na madeira, e de sua testa, começou a correr um filete de sangue, assustando a todos.
- Que azar! Justo onde tinha o prego eu fui bater a testa!
Ao ouvir a história, Mabel, que exigira de Selma todos os detalhes da noite anterior – quero ouvir tudo, tudinho! – Mabel, dizia eu, ficou branca, e exclamou:
- Ah, então é verdadeira a história do bruxo da Calábria!
- Bruxo da Calábria?
Mabel levantou-se, pegou a foto, contou a Selma o que havia feito:
- Eu apenas desejava a ele uma dor de cabeça, por não ter insistido e enfrentado meu pai.
- Mas, que bruxo da Calábria?
- Meu avô. Minha mãe diz que meu avô era um bruxo. Devo ter herdado os poderes dele.
Selma percebeu que, por trás destes comentários frívolos, Mabel estava escondendo uma imensa dor.
- Não posso contrariar meu pai, Selma. Afinal, eu quero ser médica. Eu não poderia pagar meus estudos.
Durante os anos seguintes, Mabel nunca viu Daniel em companhia feminina, nem soube de relacionamentos amorosos dele por comentários de ninguém. Um ano após a formatura, ela ouviu dizer que ele se casara, com uma moça escolhida pelos pais.
- A noiva, já que não posso ter a quem quero, é indiferente – teria ele dito ao amigo Genovês.
Pela vida afora, Mabel acompanhou a vida de Daniel pelas publicações médicas do país, pois o colega tornou-se um renomado médico em sua especialidade. E sentiria um aperto enorme no peito ao saber de sua morte, quarenta anos após. Minha primeira paixão – pensaria ela – que não deu certo, por causa do louco do meu pai.
De como Mabel escolheu a estratégia para selecionar seu marido e como seu inconsciente lhe puxou o tapete.

Ora, como a mãe, Mabel gostava de crianças e queria ter sua família.
Então, resolveu escolher um marido. E planejou uma maneira científica de resolver a questão.
Já que não poderia namorar o eleito de seu coração, resolveu exercitar-se em paqueras  e relacionamentos. Era um passatempo inocente, pensava ela, e servia para distrair a dor de estar viva, sendo filha de quem era.
A princípio, a moça observou as colegas, quer dizer, as colegas bonitas e cortejadas pelos rapazes. Observou que os rapazes, qualquer que fosse o discurso, gostavam de conversar com as moças bem vestidas, bonitas, o que significava com cabelos bonitos, com pele bonita, com sorriso bonito, bem humoradas, e que admirassem seu interlocutor. Demonstrar inteligência ou discordar do argumento do macho era a morte da paquera e de qualquer simpatia por parte do macho.
Assim, a moça, em primeiro lugar, desfez-se dos óculos. Procurou um bom oftalmo e experimentou lentes de contato. A seguir, começou a freqüentar semanalmente um salão de beleza para unhas e cabelos – circulou por vários até encontrar um com bom preço, bom atendimento, quer dizer, sem televisão, com hora marcada, freqüentado pela boa sociedade da terra (Mabel lembrava-se bem dos conselhos da mãe: aparência é tudo, e ser vista no salão freqüentado pelas mulheres que circulam nas colunas sociais, ajuda a confundir seu nome com o nome delas)
Mabel diariamente treinava sorrisos e olhares sedutores em frente ao espelho.
Divertia-se a ver a reação dos colegas de classe, que começaram com comentários casuais, tipo ‘nossa, seus olhos são bonitos, que bom que deixou os óculos’ e, em seguida, ao ver o sorriso e o trejeito de cabeça que ela fazia, inclinando o rosto para o lado e, neste movimento, jogando os cabelos anelados para trás dos ombros, avançavam um pouquinho mais e arriscavam uma piscadela.
Mabel divertia-se em corresponder às piscadelas. Piscadelas são, por princípio, secretas, só as vê quem pisca e quem recebe. Em seguida, o rapaz arriscava um esbarrão casual à hora da saída, acompanhando-a para casa e conversando no caminho, ou, sendo mais tímido, arriscava um telefonema com um pretexto de estudos – tem aquele livro, ou resumo, ou, sei lá, está calor, vamos tomar um sorvete?
Assim, Mabel começou a sair com todos os colegas de classe, e, a seguir, atacou os das classes mais avançadas. Estes, ela encontrava na biblioteca, pois eram os mais estudiosos e com melhor futuro profissional que ela procurava.
Mabel brincava com todos eles, afirmava que não pretendia namorar até findar o curso de graduação e dizia que não levava os avanços a sério, que eles diziam amabilidades para todas as moças, e que ela era só uma colega em procura de companhia para momentos de lazer. Assim, não permitia abraços, beijos, não prometia nada, e sua sinceridade divertia bastante os homens, que continuavam a convidá-la porque apreciavam sua alegre companhia, podiam contar-lhe seus casos amorosos e pedir conselhos a uma amiga mulher e usufruir de uma camaradagem gostosa.
Desta forma, Mabel aprendia muito sobre a psicologia masculina, e, não sendo uma rival de verdade para as amigas que queriam namorar de verdade, garantia um bom relacionamento com todo mundo. Ninguém entendia seus motivos, achavam seu comportamento original, porem, sendo inofensivo, porque não aproveitar as vantagens do comportamento desta excêntrica garota?
Selma é que ficou indignada com as manobras de Mabel. Perguntava aos rapazes porque saíam com Mabel, com atitudes de paquera, para depois fazerem piadas a respeito dos encontros? Os rapazes não escondiam as piadas de Mabel, até contavam para ela, e gostavam de provocar Selma, principalmente quando ela era parte interessada, e quase chorava de ciúmes.
Mabel contava seus avanços e fantasias de maneira bem curiosa.
Por exemplo, o caso do Edmilson. Um rapaz quieto, sério, que queria ser cirurgião e passeava pela escola com uma maleta profissional, sonho de todos os acadêmicos jovens. Certo dia, no horário de almoço, Mabel resolveu abordá-lo no anfiteatro, pois percebeu que este era o local para onde Edmilson discretamente se retirava no horário do almoço. No imenso cômodo, só havia os dois. Edmilson, distraído, acostumado a ficar sozinho, a principio não percebeu Mabel. Abriu a maleta e retirou de lá um sanduíche. Ela, que se aproximava, olhou curiosa para dentro da maleta. Que decepção! Ao invés de ampolas, seringas, frascos de remédios misteriosos, apenas viu, alem do sanduíche, uma muda de roupas e um molho de chaves.
A moça puxou conversa e sentou-se ao lado do rapaz, que constrangido, ofereceu o sanduíche. Ela recusou e ofereceu um pedaço de sua barra de chocolate. Ele aceitou, como sobremesa, e, no sorriso de agradecimento, a decepção final – um dente de ouro brilhou desarmônico do lado esquerdo da boca.
- Este – decretou Mabel para as amigas – foi o final do encontro que não aconteceu. A decepção da maletinha preta e inda por cima, um dente de ouro, ninguém merece.
Ricardo, que a principio perturbou-se com tantos rapazes a bater em sua porta, e com as freqüentes saídas da filha, recebeu como resposta:
- Estou obedecendo ao senhor meu pai. Não saio com judeus e estou a escolher um marido.
A mãe, a quem ela contava com detalhes todos os encontros, desta vez apoiou sua atitude e acalmou o marido.
- Deixe, a menina não está fazendo nada de errado.
Ora, depois de pesquisar entre os colegas da faculdade, sem encontrar nenhum macho interessante, Mabel resolveu arriscar em outros campos. Foi incentivada a isto pela amiga Selma, que, passeando com ela por uma praia de Guarujá, exclamou para um rapaz lindo que passava:
- Uau! Um pecado ambulante!
O rapaz olhou para elas, correspondeu ao riso de Selma, e, mesmo sem puxar assunto, alegrou a tarde da amiga. Mabel exclamou:
- Caramba! Você olhou para ele com quem olha para um sorvete! Como se quisesse morder!
- Bem, eu queria mesmo. Confesse, ele é um pedaço de mau caminho.
De outra feita, estando as duas deitadas na areia, Selma ficou a observar uma turma de homens maduros que se aproximavam.
- Mabel, vamos ver se eles se interessam por nós. Tem uns dois ali bem bonitos.
Mabel, mais que depressa, sentou-se, preocupada, vendo aquela turma desconhecida a se aproximar da amiga que quase os engolia com o olhar. Os homens pararam e foram direto ao assunto:
- Ei ,garotas, querem vir ao nosso apartamento? Vamos fazer uma macarronada e temos uma caixa de bom vinho. Que tal?
Mabel ficou vermelha como um pimentão, pois conseguiu ver ‘a tenda armada’ do homem que falava, e de mais outros dois ao lado dele.
- Claro que não. – disse Selma, antes que Mabel abrisse a boca. – Já estamos de saída, meu pai está manobrando o carro ali – e ela apontou para um estacionamento próximo. – Vamos depressa, Mabel, meu pai disse que não demorássemos a recolher as esteiras.
As moças quase correram para fora da praia, entre risos nervosos e a percepção do risco corrido.
- Eu nunca fui confundida com uma prostituta até hoje – sussurrou Selma – e você?
- Eu ? Estou em pânico. Total. Como você apronta uma dessa com um bando de mafiosos?
- Bem, não exagere...
- Louca, eles eram bem mais velhos, com jeito de turistas, o que você acha que eles iam pensar?
As garotas se aproximaram de uma família ao lado de um carro e perguntaram pelo ponto de ônibus, prolongando a conversa, observando os homens se afastarem. Quando acharam seguro, foram embora em busca do próprio carro e ficaram o resto do verão em outras praias.
- Acho que eles não eram judeus – provocou Selma, e Mabel começou a gargalhar.
Foi por esta época que Mabel começou a pescar na praia. Pescar na areia, como diz a música, ‘porque na areia dá mais peixe que no mar’.
Conheceu um estudante de engenharia que a cativou tanto que arriscou um namoro. César, para seu espanto, tinha várias das qualidades que ela procurava em um futuro marido e mais uma: a excitava. Cada vez que ele a beijava, suas calcinhas ficavam molhadas, suas pernas bambas, e sua visão escurecia.
Certo dia, ele beijou a palma de sua mão, o que provocou nela um arrepio que se espalhou perigosamente até a vagina. Neste dia ela terminou o namoro.
As amigas não entenderam.
- Como não? Eu não ia conseguir resistir até o final do curso... E depois, seria uma traição ao Daniel.
- Patológico – declarou Janete.
Embora o futuro engenheiro enviasse flores e retornasse diversas vezes, Mabel não cedeu.
- Primeiro, a faculdade. Este namoro com você está atrapalhando minha concentração nos estudos.
Em seguida, ela conheceu o rabólogo.
- Rabólogo? – perguntaram as amigas.
Tratava-se de um homem muito inteligente, o tipo que conhece a fundo todos os assuntos, ou seja, um chato de carteirinha. Mabel o conhecera na praia, marcara encontro na lanchonete do Shopping sábado à tarde, e mal conseguiu abrir a boca, pois o sujeito falava o tempo todo sobre tudo. Ao final da tarde, ele a acompanhou até a porta do prédio, e um cachorro passou por eles.
O rapaz afirmou que o cão era um excelente guarda, pois se conhece um cachorro pelo rabo, e a conversa, ou melhor, o monólogo, enveredou pelos vários tipos de rabos nos diferentes tipos de cães, até Mabel dar um ‘basta!’ definitivo na conversa e no relacionamento.
- Ora, pelo menos com este, você não teria problemas em escolher um bom cão de guarda para sua casa... – falaram as amigas.
E então, entrou em cena o professor de oftalmologia.
A faculdade terminava, iniciavam-se os últimos estágios, e, no ambulatório de oftalmologia estava Absalão, mais judeu impossível, mais inteligente improvável, completamente solteiro, por timidez ou feiúra não se sabe, mas, por motivos que só Freud explicaria, caiu no agrado de Mabel.
A principio Mabel quis negar o encantamento. Ficava mais tarde no ambulatório para discutir casos. Oferecia-se para terminar pequenas intervenções, puxava conversa, jogava charme, como aprendera a fazer com os outros homens, para não perder a prática, ignorando a regra de evitar os judeus. Pouco a pouco ficou sabendo que Absalão ouvia ópera, tinha uma coleção de discos clássicos, lera todos os livros que ela também lera, enfim, era um intelectual, como ela. Vendo que era correspondida em seus avanços, ela tratou de esfriar o flerte, pelo menos até a formatura, quando, livre da ameaça financeira do pai, ela poderia fazer de sua vida o que bem quisesse. Ao menos, foi o que ela, em sua ingenuidade, pensou.
Foi totalmente franca com Absalão – não posso namorar até o termino do curso, mas depois da formatura, ficarei feliz em sair com você. É uma promessa que fiz a meu pai.
Ele não entendeu, mas, como a formatura dela estava próxima, esperou.

Capítulo que o leitor pode pular sem susto de perder o fio da trama, e no qual o autor coloca algumas reflexões de Mabel sobre a vida amorosa das mulheres, que, embora interessantes, são perfeitamente dispensáveis para o enredo e configuram o que o publico chama de encher  lingüiça – com a justa ressalva de que, em muitos casos, são justamente estas as partes mais engraçadas de um história.



Aproximando-se o fim do curso, Cupido estava disparando suas flechas pela turma.
Janete estava de casamento marcado com o Boca.
Ninguém entendia como uma garota de aparência frágil e tão delicada em seus gestos pudesse estar enamorada de um brutamontes que falava palavrões em seqüência. Verdade que, quando Janete estava no grupo, o rapaz só usava as palavras do dicionário, com bastante propriedade, aliás. 
Janete explicara para as amigas que, logo após a ruptura do seu primeiro namoro, o Boca aparecera na casa da avó, com quem ela morava, e a convidara para dançar, só para alegrar o sábado, disse ele, como amigos. Ela aceitara, depois que a avó o fizera entrar, e o entretera com seus bolinhos e relatos de compridos sonhos, relatos que o rapaz educadamente escutara sem interromper e sem mostrar sinais de enfado. Mais tarde, no restaurante para onde ele levara Janete, entre um prato e outro de um jantar regado a vinho, ele se comportara como um cavalheiro.
- Tudo o que peço – dissera ele – é que você saia comigo por um mês, como amigos, para você me conhecer. Depois disso, se você disser que só quer minha amizade, eu nunca mais falarei em namoro, prometo.
A questão, disse Janete, é que, em minha companhia, ele nunca fala alto, nunca diz palavrão e se comporta com a maior finura. E a verdade é que eu gosto de ser bem tratada. Além disso, ele é inteligente e divertido.
Inteligente e divertido, lá isso o Boca era, e ninguém podia negar que Janete era uma boa influência sobre aquela cabeça de rebelde sem causa.
Leci estava de casamento marcado com o Sancha – apelido do Laertes, nunca se soube o porquê. Leci ficara famosa em Santos inteiro por causa de seu fusca cor-de-rosa. Nunca vi um fusca cor-de-rosa além do de Leci. A moça, sendo de família pobre, ganhara o carro de presente do pai, ao entrar na faculdade; infelizmente, o único carro que ele podia comprar para ela, por estar muito mais barato, era aquele fusca cor-de-rosa, que, pelo menos, era feminino, sorria Leci, explicando, sem vergonha, a razão do estranho carro. E como Leci era uma dessas mulheres grandes, avantajadas e nada feminina, este era mais um motivo para riso – o carro não combinava com a dona.
O Sancha, mulherengo, fletara com todas as garotas de todos os outros cursos durante cinco anos – nenhuma menina da turma queria namorar com aquele prosmícuo rapaz, que se debruçava no ombro de todas e murmurava com sua voz macia de locutor de rádio: todas as mulheres são lindas, porque eu deveria ficar preso a uma somente?
Não mais que de repente, no último ano, do nada, ele se declara para Leci, a simpática feiosa e mais pobre da turma, prometeu endireitar-se – e endireitou-se mesmo! Foi marido fiel a vida inteira!
De qualquer forma, pensava Mabel, Leci não tinha escolha – ou arriscava com Sancha ou ficava para tia.
No entanto, o que a deprimiu foi o noivado de Maria Pastora Patavina. Não bastasse o desastrado nome, combinação esdrúxula escolhida por uma espanhola e seu marido italiano, a Pastorinha era sem graça e encolhida, como costumam ser as crianças que crescem massacradas por uma educação excessivamente religiosa, o que, aliás, estava completamente em desacordo com o século vinte. Ora, a Pastorinha crescera ao lado de um vizinho, também médico, formado um ano antes que ela, e, desde menina, as duas famílias botaram gosto no casamento dos dois. Mais por obediência e comodismo que por afeição, os dois começaram a sair juntos, e arrastaram durante anos um namoro morno, que permitia a ela passear e a ele impedia que os pais insistissem em indagar por onde ele andava e com quem.
- Se não estou com a Pastorinha, estou com meus amigos, estudando. – estudando a melhor temperatura para desgustar um chopp com iscas de peixe, talvez, mas a família e Pastorinha fechavam os olhos, por conveniência. Ela sempre dissera para Mabel que, ao se formar, assinaria um contrato de emprego onde quer que fosse e sairia de casa, indo em busca de sua felicidade pessoal. Ocorre que, após seis anos de faculdade, Pastorinha tinha de reconhecer, honestamente, que suas chances no mercado matrimonial eram quase nulas – ela não era do tipo que agradava aos rapazes do século vinte – sem beleza, cometendo o pecado mortal da seriedade, tímida e realmente apavorada com a liberdade sexual de sua geração, ela preferiu casar-se com o rapaz que, ela pensava, não ousaria ultrapassar, com ela, os limites impostos pela religião das famílias.
Pastorinha ainda tentou enfrentar o pai, pensando em viver sozinha, porém o pai esclareceu que ela envergonharia a família se desmanchasse o noivado e seria culpada de deixar as duas irmãs mais novas solteiras para sempre. Sem contar o fato ameaçador de que a vovó Maria dos Remédios poderia enfartar com o comportamento inapropriado da neta mais velha. Pastorinha, resignada, andava pelos corredores distribuindo seus convites de casamento como quem comunica a celebração de uma missa de sétimo dia.
Nos anos seguintes, Pastorinha, como previra Mabel, encheu-se de rugas, celulite e filhos, enquanto o marido passeava com ricas amantes pela praia, e, finalmente, a abandonou, assim que os pais dele, únicas pessoas a quem ele não queria magoar, morreram. Tarde demais para Pastorinha, amargurada, apagada, trabalhando solitária em seu laboratório, pois, reprimida,  escolhera uma especialidade que não a colocasse em contato com gente.
Mabel, ao olhar para Pastorinha, sentia-se menos infeliz. Casar-se por obrigação com um homem sem caráter deve ser muito pior do que ser afastado do homem a quem se ama. Ao menos, o amor fica intacto – pensava Mabel.
Antes de investir em Absalão, Mabel tentara um última aproximação com Zalc, já que se sentiria livre após a formatura. Ele, no entanto, orgulhoso, disse a ela que ela não lutara por ele no primeiro ano, colocara sua profissão na frente do romance, o que o magoara, e, além disso, ele temia que o pai dela prejudicasse a família dele – você sabe, quem emigrou para o Brasil entre guerras, sempre tem lá seus segredos, e não desejo tal tipo de sogro, nem meus pais merecem aborrecimentos. Como se veria mais tarde, Daniel estava correto em temer represálias do pai de Ricardo Gonçalves.
Assim, Mabel tentaria sua felicidade em um segundo amor – de qualquer modo, ela preferiria viver e morrer solitária do que submeter-se a um casamento sem afeto.

De como, após cinco anos de vacas magras, Mabel sonhou, como José, com anos de fartura, e de como sua caminhada para a terra prometida acabou no deserto, sem maná nem saga ardente que alimentasse sua fé na justiça divina

Mabel convidou Absalão para dançar com ela em seu baile de formatura.
Já recebera o diploma, considerava-se livre. Candidatara-se a um estágio remunerado no hospital escola e fora aceita na endocrinologia. Sua independência financeira era certa.
Valsou triunfante, sentindo-se linda em seu vestido vermelho cereja.
Apresentou Absalão aos pais com ar desafiador. Ricardo arregalou os olhos, furioso, porém calado. No decorrer da noite, percebeu que o judeu era mesmo o novo namorado de sua filha.
Alzira estava feliz, garantiu que não sabia de nada, quem sabe o relacionamento acabara de iniciar-se ali mesmo, no baile.
- Realmente – confirmou Mabel – começamos juntos hoje, e continuaremos, já que papai agora não pode mais ameaçar deixar-se sem estudos. Se quiserem, eu até mudo de casa, tem uma pensão razoável perto do hospital, onde moram alguns residentes, posso ficar por lá.
 - De maneira nenhuma, quero minha filha em casa, e você nem se atreva... – Alzira nem sabia o que dizer ao marido, de tão nervosa que estava. – A menina está namorando um médico, afinal, não um vagabundo.
Ricardo, furioso, resignou-se.
- Por enquanto – sugeriu Alzira – nós o recebemos em casa, conversamos com ele, vamos descobrir seus pontos fracos, quem sabe ela se desinteresse dele logo, pois, tu não percebeste que ela está te provocando? É só não dares trela, que ela desiste, a brincadeira perde a graça.
- Você acha? – comentou Ricardo, esperançoso.
Nas semanas seguintes, Ricardo não tocou no assunto namorado.
Mabel saía, retornava tarde, trazia o namorado em casa quando queria e por quanto tempo achasse apropriado.
Alzira deu um jantar para comemorar seu aniversário e convidou o moço.
Absalão apareceu de mãos vazias.
À mesa, serviu-se de salada usando o próprio garfo.
- Este – falou Alzira – é o garfo apropriado para retirar a salada. Cada travessa tem seu próprio talher, não precisas usar o teu garfo nas travessas comuns. – Ela queria dizer ‘não deves’, olhava estarrecida para a filha, que abaixou os olhos, com as faces vermelhas.
À sobremesa, o rapaz pediu para repetir o mingau.
- Pudim – corrigiu Alzira – é a sobremesa predileta de Mabel, nosso Getúlio Vargas.
- É um doce gaúcho – explicou Ricardo – por isso deram o nome de Getúlio Vargas. Sabes que foi Getúlio, não sabes?
- Claro que sabe, Ricardo, o que talvez não saibas – continou Alzira – é que Getúlio foi gaúcho.
Alzira fez diversos comentários sobre o Rio Grande do Sul e sua mocidade em Alegrete, porém Absalão continuava calado, sem retrucar.
À noite, Alzira comentou com a filha:
- Teu namorado não tem bons modos, pois não? Não me trouxe nada, era meu aniversário...
- Ele não conhece teus gostos.
- Um vinho, ao menos, ele poderia ter trazido, ou um doce para sobremesa.
- Tu és diabética e Absalão não bebe álcool.
- E tu queres te fazer de cega para os maus modos do gajo. Caramba! Chamar pudim de mingau e servir-se com os próprios talheres! Que nojo!
- A família dele é simples, ele não tem lá um verniz de educação como nós.
- Ele não aprendeu nada com os amigos médicos, ou ele vai nesses congressos chiques e se comporta assim? Não deve ter muitos amigos, o teu Absalão.
- É, não tem mesmo, eu preciso ensinar alguma coisinhas para ele.
- Pois comece com as boas maneiras à mesa – sugeriu Alzira. – E ensine o rapaz a levar uma conversação mínima.
- Ora, teus assuntos não interessam a ele.
- E certamente os dele não interessam a mim, o que não me impede de ser educada!
Mabel calou-se, pois sabia que havia uma pitada de razão no que a mãe dizia. E decididamente partiu para o que chamou de campanha sócio-educativa para integrar um gênio à sociedade dos comuns mortais.
Alzira alimentou a esperança de que as evidentes diferenças de educação afastassem Mabel de Absalão, mas o rapaz  tinha qualidades poderosas – inteligente, culto, apaixonado por Mabel e totalmente devotado a ela. Tanto que te aprendeu um pouco das boas maneiras só porque ela insistiu com ele de que eram importantes.
Selma e Janete irritavam-se com ele.
- Mabel, não podemos mais sair juntas, pois ele não conversa conosco nem com nossos namorados!
- Bem, ele é sério, não é dado a brincadeiras.
- Tradução: ele é um chato.
Certa tarde, estando Ricardo sozinho em casa, chegou Selma e ele a abordou:
- Entre, converse um pouco comigo, preciso saber deste tal Absalão.
Selma ficou ressabiada. Ricardo desabafou por quase uma hora, contando sobre as visitas do moço.
- Quase não me sinto mais em casa – disse ele – Aqui é pequeno, e aqueles dois se acomodam no sofá e ficam horas e horas a falar de ciência e outros assuntos intelectuais que nós não acompanhamos. Eles poderiam falar de livros, de filmes, deixar que fizéssemos alguns comentários, mas não, e não tenho para onde ir, a não ser trancar-me no quarto. Nem a televisão posso ligar mais, não que eu seja fã de televisão, enfim, sinto-me um estrangeiro em minha própria casa.
- É, o Absalão é estranho, mesmo.
Ricardo começou a falar uma enxurrada de coisas. Como, no Ano Novo, Absalão deixara Mabel sozinha para ir pagar uns impostos em Iguape, já viu isto, prefeitura que recebe impostos no dia 31 de dezembro? Pois a mocinha fez cara de inocente, quando eu disse a ela alto e bom som que ele foi ver é alguma amante por aí, alguma boa festa de Réveillon ele tinha para ir, e sabe você o que ela fez? Mabel jogou em cima de mim o vaso de cristal de Alzira, um vaso tcheco de quatro mil reais, presente de meu sogro em nosso casamento. O vaso espatifou-se na parede, pois eu me esquivei, e a Alzira até hoje está inconsolável com a perda de seu vaso tcheco de cristal. Tudo culpa do Absalão, Mabel jamais ousaria ser tão agressiva comigo se não fosse a má influência dele.
- Um vaso de quatro mil reais – repetiu Selma, atônita com a frivolidade do comentário.
Selma sabia do acorrido no dia primeiro diretamente da fonte, e estava pasma por Mabel ter engolido a história dos impostos, ou melhor, tinha a certeza de que a amiga não caíra no conto; devia saber de algo que Absalão não queria contar a ela. Enfim, como diz o ditado, em briga de marido e mulher não se põe a colher, a Selma não queria perder a amizade de Mabel.
- Pois já sei o que vou fazer – resolveu Ricardo – vou contratar um detetive, e descobrir algo ruim no passado dele.
- Um detetive? – exclamou Selma.
- Prometa não contar nada para Mabel – pediu ele.
- Bem, eu vou ficar em uma posição bem esquisita... - esgasgou-se a moça.
- Ora, se você contar, ela não vai acreditar, eu vou desmentir.
- Não vou contar – resolveu Selma, e pensou que estava diante de um homem perigoso.
- Sabes que a Mabel deu um quadro a ele? Um quadro pintado pela avó de Alzira, pequeno, mas, afinal, um quadro que não pertencia a ela, de uma artista de verdade, de valor, ela não deveria ter feito isto.
Selma ouvira muitas conversas sobre a avó artista de Alzira, uma gaúcha corajosa, desafiadora, que ousara exibir sua arte naquela terra machista, completamente desconhecida fora do Rio Grande do Sul. Enfim, como Mabel dizia, tudo seria dela depois da morte dos pais, não seria? E não tinha tanto valor assim, afinal.
Dois meses mais tarde, Mabel estava transtornada.
- Selma, Janete – contou para as amigas – Absalão fez uma coisa horrível. Devolveu-me todos os livros e CDs que dei a ele, meu retrato e o quadro que lhe dei de presente, e disse que não quer mais saber de mim. E saiu correndo, e não consigo falar com ele.
Selma sentiu-se mal.
- Ora, amiga, na boa, você encontrará alguém melhor, está certo que ele é inteligente, especial, mas é um chato e sem educação – afirmou Janete, com sinceridade.
- De qualquer forma, foi bem inesperado, quer dizer, não há nenhum motivo mesmo? Nem uma brigazinha boba?
- Nada – soluçou Mabel – eu acho que merecia ao menos uma desculpa esfarrapada tipo ‘você não pertence a minha religião’ ou coisa assim.
No dia seguinte, Ricardo bateu à porta de Selma:
- E então, os dois desmancharam mesmo?
Selma mal podia falar.
- Como? O senhor aqui?
- Posso entrar?
Como dizer não? Ela serviu-lhe um suco e esperou pelas novidades:
- Contratei o detetive. – contou ele – O avô do Absalão fugiu sem documentos da Rússia, onde era procurado por furto. O avô está com noventa anos, e a avó também está viva, os dois são ilegais no país. Fui verificar junto à imigração, peguei todos os dados para um processo de extradição. Depois fui procurar o Absalão. Falei com o rapaz com educação, pedi para que ele desistisse da Mabel, como ele não me ouviu, eu abri o jogo, falei tudo o que descobri a respeito dos velhinhos e fui claro: se ele não deixasse a Mabel, e devolvesse o quadro da Alzira, eu iria denunciar. Mabel não falou comigo ontem, mas escutei seu choro noite adentro, de manhã cedo ela saiu com os olhos inchados, então vim confirmar, você deve saber, eles desmancharam mesmo?
- Ele devolveu o quadro, não foi?
- Devolveu. – Ricardo exibia um ar vitorioso. – Então posse ficar sossegado, não é? Acabou.
Era demais para Selma. Quando Ricardo saiu, ela pegou no telefone e contou tudo para a amiga.
- Quer saber? Meu pai é um completo louco. – respondeu Mabel  – Não posso culpar o Absalão. Quem pensaria em prejudicar um casal de velhinhos, refugiados de guerra? Um homem sem compaixão.
Selma ficou muito triste, mas a amiga não estava zangada com ela.
- O que você poderia fazer? Nada.
E foi assim que Mabel descobriu que Zalc tinha razão. Daniel, provavelmente, tinha em sua família segredos a ocultar. Ricardo seria implacável com ele também.
- E eu que acreditava no Marx : independência começa com independência financeira. Quem dera! Mas certo estava aquele outro filósofo, o que disse que a liberdade é a ilusão do homem. Lutar contra alguém como meu pai...odeio ele!
- Seu pai perdeu, Mabel, o que seu pai queria era você inteira para ele, sem rival.
- Como ele marcou no meu nome – retrucou ela, amarga. – Meu dono.
Foi um doloroso período, o que se seguiu ao rompimento com Absalão. 
No mês seguinte, Absalão anunciou que ia casar-se, e que a noiva estava grávida. Todos os que conheciam Mabel a olhavam penalizados. Só a noitícia de que a noiva escolhida era praticamente sua sósia trouxe algum consolo. Ela comentou para Selma:
- É um recado claro para o meu pai. Já estou definitivamente fora da vida de sua filha. Não duvido nada de que o tal detetive ainda esteja por aí atrás de nós, para ver se não nos encontramos às escondidas ou algo que o valha. Quer saber? Absalão é um covarde, não me merecia.
- Sinceramente, Mabel, acho que você faz de propósito, procura judeus para provocar seu pai.
- Que bobagem, amiga. O meu pai é perigoso, não é? Pois bem, vou casar-me e dar tranqüilidade ao ‘papai.



A interessante versão feminina de O médico e o monstro, ou de como a máscara social de Mabel sucumbiu aos vícios, e de como o lado renegado de sua personalidade, para salvar sua carreira, saiu da sombra, para atuar, literalmente,  nas trevas duplas da noite e da inconsciência
Mabel não queria dar ao pai o gostinho de vê-la chorando. Acostumara-se a bancar a durona.
Porém, no dia do casamento de Absalão, desabou.
Lembrava-se muito bem do dia seguinte ao baile de formatura. Ela estava sentada na varanda, quando Janete chegou e a encontrou com a revista Cláudia Edição das Noivas na mão.
- O que você está fazendo aí, amiga?
- Escolhendo meu vestido de noiva. Que tal este? Tem um enfeite de cabelo que destaca meu rosto meio redondo e uma cintura justa, corte reto, sem muitos detalhes, clássico, como eu gosto.
- Noiva?
- É. Eu vou casar com Absalão. Este, meu pai não pode impedir.
Janete rira.
- Amiga, só você! Mal começou o namoro! Nem sabe se ele ronca, se costuma cantar óperas no banheiro ou se passa os domingos jogando partidas de xadrez com ele mesmo! Ou se ele vai sumir correndo quando vir você de máscara facial e bobs gigantes no cabelo... – isso era pura provocação, alusão a um dia, no primeiro ano da faculdade, no qual Janete e Daniel passaram pela casa de Mabel e ela, supondo ser a mãe que acabara de sair, e houvesse voltado, talvez por ter esquecido a chave, abrira a porta e os recebera com o rosto verde-abacate e cachos enrolados sem lenço. Ah, como Mabel ficara vermelho-tomate, apavorada, achando que Daniel nunca mais olharia para ela!
- Não se preocupe, eu tenho mãe e irmãs... normais! – exclamara Daniel, no ato, para desanuviar a tensão.
Mabel saiu das lembranças para o momento atual:
- Precipitada? Você acha que eu sou precipitada? Eu já passei dos vinte faz tempo!
- E namorou por um dia. Conta errada.
Mabel guardara a revista no fundo de uma gaveta. E o tempo passara...
Agora, em pleno sábado, dia do casamento do ex-namorado, ela resolvera fazer uma faxina no armário, para ocupar-se, e encontrara a revista. Sentou-se, olhando para o vestido desejado. Só outra mulher para entender o profundo desespero que se apossou dela. Por sorte, estava sozinha, podia derramar umas lágrimas.
Foi lavar o rosto e seus olhos caíram sobre a garrafa de vodca sobre a mesa da sala. Foi à cozinha, pegou um limão, preparou uma dose de caipiríssima, depois outra, e quando percebeu, tinha tomado a garrafa toda.
Mabel guardou a garrafa. Depois pensou quanto tempo o pai levaria para perceber, pensou em quebrar a garrafa, depois optou por sair e comprar outra. Derramou na garrafa antiga quantidade suficiente para repor o liquido tomado, e acabou de tomar o restante da garrafa nova. Embrulho a garrafa  vazia em papel pardo, colocou-a no lixo e voltou para o apartamento, dançando e rindo.
Esta foi a primeira de uma das inúmeras sessões de bebedeira solitária, acompanhada por caixas de bombons de licor e potes de sorvetes variados.
Quando os pais estavam em casa, ela deixava-se ficar na varanda, relendo seus autores policiais prediletos e comendo doces. Quando eles saíam, ela esvaziava garrafas e garrafas de bebidas alcoólicas variadas.
- Menina, vais ficar enorme! – exclamava Alzira.
- Tanto faz. Ficar bonita para quem?
- Vais ficar diabética com eu.
- Melhor. Morro mais cedo.
Alzira se defendia:
- Porque queres maltratar tua mãe? Bem sabes que eu não tive nada a ver com isso. Nunca soube deste tal detetive.
Verdade é que Alzira soubera, sim, e apoiara, porém não imaginava que a filha sofreria tanto.
É possível que Alzira estivesse arrependida. O fato é que ela não se cansava de repetir ao marido:
- Antes nossa filha se tivesse casado com o Daniel, moço bonito, educado... e, pelo que sei, rico também.
Quando começou a perder as roupas, Mabel resolveu emagrecer. Como? Detestava exercícios.
Partiu para as anfetaminas, fáceis de conseguir com o receituário azul do hospital.
- Anfetaminas e álcool, combinação suicida – exclamavam as amigas, horrorizadas.
Na primeira semana, Mabel parou o carro em meio a um cruzamento, e ficou lá, parada por minutos, em meio ao buzinaço, segundo Selma, que estava a seu lado, escolhendo uma estação de rádio que não tocasse samba nem música americana. Isto porque iria estacionar assim que virava a primeira esquina.
Na segunda semana, ela passou pela casa de Janete, que estava organizando seu casamento, e insistiu em acompanhar a amiga até a igreja. Janete não achou que fosse uma boa idéia, mas já se havia indisposta com Mabel ao não perceber que a amiga trocara de carro – de um branco para um vermelho, nem dava para se desculpar pela distração. O antigo carro a lembrava do ex-namorado...
A visita à igreja foi um total desastre. A maestrina, com quem Janete fora acordar as músicas da cerimônia, estava para começar um casamento. De costas para o órgão, Janete e a maestrina selecionaram as músicas, dentre a lista que Janete levara, enquanto Mabel, por pura diversão, sentava-se no banco do órgão e apertava cada uma das teclinhas acima do teclado e cada um dos inúmeros pedais abaixo do banco.
Quando Janete saía com a amiga da igreja, a próxima noiva do dia ia entrando, e a música do órgão começou, totalmente desafinada, e, da escada em espiral que as levaria para fora do recinto, ouviam a maestrina gritar:
- Quem foi que mexeu em meu órgão?
Janete ficou muito brava.
- Mabel, foi você, não foi?
- Ora, eu só estava brincando com todos aqueles pedais e teclinhas...
- Cada um daqueles pedais e teclinhas fazem toda a diferença! Que maldade! Como pode fazer uma coisa dessas?
Mabel deu de ombros. Não se incomodava de ficar sem amigas, já estava mesmo sem namorado, sem pais...
O tempo foi passando, e, poucas semanas depois, aconteceu o que de pior pode acontecer a um médico. Um fato, a princípio, inacreditável.
Mabel levantou-se na manhã de seu plantão e comentou com Janete:
- Que maravilha de noite! Que sossego!
Janete, ainda brava com a amiga, não respondeu. No entanto, Mabel percebeu que a amiga a olhara de um jeito estranho.
Saíram as duas do quarto e Janete dirigiu-se ao estacionamento, Mabel em seus calcanhares.
- Doutora, doutora! – e uma das funcionárias barrou a saída de Maria Isabel – a senhora tem de carimbar o pedido de morfina. E fazer a prescrição do enfartado desta madrugada.
Mabel ficou espantada:
- Como?
Janete percebeu que a amiga estava muito, muito pálida. Aproximou-se. Na papeleta nas mãos de Mabel, preenchida à mão, com a letra de Mabel, estava, entre outros papéis, uma receita de morfina.
Mabel voltou para a enfermaria, encontrando pessoas que se dirigiram a ela familiarmente, e das quais ela não se lembrava em absoluto. O Genovês, que chegava, avisado por Janete, tomou conta da situação, entrou no quarto do doente com Mabel, olhou o eletrocardiograma, checou a medicação da noite, afastou os familiares e enfrentou Mabel:
- E então?
- Então o que? Eu nunca vi este homem antes, no que se refere a mim, dormi a noite toda. Eu não me lembro de nada.
- Por sorte, você faz boa medicina enquanto anda no sono – resmungou ele – Vai deixar estas drogas ou a gente vai ter de levar você ao conselho administrativo e expulsar você do hospital?
- Você não ousaria.
- Eu ousaria. Janete também. E mais alguns bons amigos que você colecionou pela vida também. Da próxima vez, você pode não ter tanta sorte.
Mabel sentou-se, muito, muito pálida.
- Eu não quero cair nas mãos de um psiquiatra. Não quero ser internada.
- Minha querida amiga, se eu sei algo sobre você, é isto: você não leva o menor jeito para vítima. Eu não vou ter peninha de você.
Mabel ia voltar-se para Janete, mas Janete já fora embora.
E o Genovês saiu em seguida, sem olhar para ela outra vez.
Neste mesmo dia, Mabel deixou para sempre as anfetaminas. Parou de beber. Começou a fazer natação três vezes por semana. Retornou para sua dieta habitual. Recuperou o peso e a auto-estima.
A apavorada Mabel acabara de descobrir que máscara e sombra, Dr. Jekyll and Mr. Hyde, são mais do que meras metáforas de psiquiatras. É melhor não brincar com nosso inconsciente.


De como um homem solteiro concordou sem mais rodeios em casar-se, somente para descobrir que seu casamento já havia sido profetizado meses antes por ninguém menos que seu próprio primo, profecia esta oculta no bolso de um terno bem guardado no fundo do armário.



Iniciou-se, na vida de Mabel, uma nova temporada de caça aos sapos, desta vez, caçadas solitárias, já que as amigas estavam noivas ou casadas.
E Mabel descobriu estar fora de moda. Educada por pais rígidos, com um fundo de catolicismo, era virgem, e pretendia casar-se virgem. Todas as amigas haviam jogado fora esses resquícios religiosos durante a faculdade, menos ela. Os homens de sua geração ou não acreditavam nela, ou saíam correndo – na direção oposta, quando ela respondia aos apelos deles com um ‘aguarde até o casamento’
- Querida amiga, ninguém hoje em dia compra carro sem fazer o teste-drive – comentou o Genoves, com sua habitual sinceridade rude, em uma tarde em que ela desabafou com ele.
- Bem, o problema é – como vou me livrar do problema sem criar outro problema maior? E nem se atreva a se oferecer para consertar esta ridícula situação!
Ele riu:
- Não me menospreze, eu poderia surpreender você.
- É do que tenho medo, já pensou, se der certo, e ficarmos juntos, que desastre total?
- É mesmo, vou passar fome e morar em uma casa empoeirada para o resto da vida!
- E eu vou passear acompanhada por um sujeito mal vestido e sem traquejo social pelo resto da vida!
Sorriram.
- Venha jantar comigo hoje, meu primo chega de Recife agora à tarde, vai assumir a vaga na Cardiologia e não conhece ninguém em Santos, além de mim. Ele é mais bonito que eu, mas não tão simpático.
Mabel apareceu para o jantar sem nenhuma expectativa, em outras palavras, esperando uma réplica do Genovês com sotaque nordestino. Qual seu espanto ao deparar-se com um alto e moreno jovem de sorriso largo e encantadores olhos verdes?
Ronaldo chegava a Santos com muito desejo de vencer. Aqui teria um bom salário, oportunidades de pertencer a uma boa equipe, e esperava fazer muitos amigos, como em todos os lugares por onde passava, pois era um incorrigível tagarela, que falava sobre tudo e com muito humor. Mabel há muito não ria tanto.
Lá pelas tantas, quando ela se retirou para ir ao banheiro, o Genovês tirou do bolso papel e caneta, anotou algo e tornou a guardar o papel no bolso.
- Que é isto? – perguntou o primo.
- Acho que você vai descobrir antes do fim do ano – respondeu o outro, enigmático.
Ronaldo, sempre prático, não insistiu e mudou de assunto.
Três dias depois, Mabel comentava com Selma e Janete:
- Conheci um cardiologista extremamente simpático, mas hoje acabou meu entusiasmo, o sujeito é um completo maluco. Imaginem, ficou contando para mim tudo o que leu recentemente sobre o uso das pirâmides, como se realmente acreditasse nisto.
- Bem, eu não sei nada sobre isto...
- Nem eu...
- Ora, parece ser impossível fazer as tais pirâmides na tal medida correta, para começar. O caso é que o Ronaldo está convencido de que as maçãs não apodrecem lá dentro, e, quando começou a falar em melhorar a saúde usando a tal pirâmide em cima das lesões, eu comecei a rir e saí correndo da enfermaria.
- Não entendi. Que mal há em tentar? Colocar em cima de uma pústula, sei lá.
- Ou – e Mabel desatou a rir – em cima de uma hemorróida... com o sujeito na posição de beduíno, com as calças arriadas, e uma pirâmide no topo... Foi o que eu imaginei quando o Ronaldo insistiu no uso da pirâmide.
E as amigas também riram.
Duas semanas depois, em nova conversa, Mabel declarou:
- Acho que vou namorar o Ronaldo, afinal, ele me faz bem, rio muito com ele, estou esquecendo minhas tristezas.
- E as pirâmides?
- Ah, ele não tem falado mais nelas, já leu outros livros, passou para outros assuntos.
Mais duas semanas se passaram, e Mabel confidenciou para as amigas:
- Vamos desmanchar esta semana.
- Como?
- Já estou sentindo o clima de ‘agora é hora do sexo’. Quando eu disser que não quero, ele vai embora. E realmente eu não quero. Fora do casamento, não. Vai contra os meus antiquados princípios. É mais forte que eu. Vocês não imaginam o que é uma educação rígida. Mesmo que a minha mãe diga para eu me modernizar, que os tempos são outros, eu não vou conseguir.
- Sua mãe ficou moderna, é?
- Bem, este é o outro problema, minha mãe evoluiu, mas meu pai, eu tenho certeza: não.
Na tarde seguinte, Mabel estava na praia, quando Ronaldo começou a conversa que invariavelmente acabaria com: no seu quarto ou no meu?
A moça começou a imaginar como faria o seu discurso para sair dignamente de uma situação que sabia ser ridícula para o local e a época em que vivia. Sentiu que o discurso estava pronto e preparou-se para a despedida, quando Ronaldo parou de falar e perguntou:
- Qual é o problema?
- O problema é que só vou começar minha vida sexual depois do casamento.
Ele olhou surpreso para ela, pensou por um rápido instante e respondeu:
- Se é assim, vamos casar. Vou falar com seu pai hoje mesmo.
Discurso entalado na garganta, Mabel quase caiu de susto:
- O que?
- Quero casar com você. Aceita este marido?
Mabel mais que depressa respondeu que sim.
Ao chegar em casa, Ronaldo contou para o primo:
- Você vai ser o primeiro a saber. Pedi Mabel em casamento.
O Genovês, ao invés de abraçar o primo, correu para o armário, tirou de lá uma jaqueta e falou para o primo:
- Tira um papel que está aí no bolso de dentro. Anda!
Ronaldo, confuso, vasculhou os bolsos da jaqueta, abriu um papelzinho dobrado, leu e exclamou:
- Que? Não acredito!
- Foi no primeiro dia em que você chegou a Santos, e eu saí com você e apresentei a Mabel. Lembra? Juro que não foi com segundas nem terceiras intenções. Mas estava no ar...
No bilhete, datado, o Genovês escrevera: ‘Ronaldo vai se casar com Mabel’.

Considerações finais sobre assuntos vários, começando pelo sistema financeiro apelidado pelos brasileiros de ‘o pesadelo da casa própria’, e  finalizando com a frase que , segundo a autora, melhor define as escolhas feitas por Mabel durante sua vida, ou seja, sua personalidade, pois, nos fundo, não é a personalidade de cada um que faz com que a vida ‘tenha a nossa cara?’
Ricardo finalmente comprou um bom apartamento para a família. Em frente à praia, em um bom bairro residencial, o Aparecida, com dois apartamentos com varanda e banheiro privativo.
Mabel gostou, é claro, e até pensou em continuar morando com os pais depois de casada; continuaria a ter roupa lavada, casa limpa e comida boa, pagando para a mãe uma eficiente auxiliar de limpeza e cozinha, ao invés de ter de passar, lavar, cozinhar ou, pior, administrar, à distância, uma pessoa desconhecida que ficaria sozinha em seu apartamento, xeretando em suas gavetas, deitando-se em sua cama, utilizando seu telefone e assistindo a sua televisão, isto é, na melhor das hipóteses, e, na pior, roubando, recebendo visitas, tirando molde das chaves para entregar a algum ladrão, não esqueçamos que a história se passa no Brasil, o assim chamado país da impunidade.
Infelizmente Ronaldo não considerou a proposta; de fato, ele nem sequer respondeu, apenas olhou feio e a questão encerrou-se por ali.
Mabel, que procurava entender um pouco de finanças, inclusive porque queria investir seus proventos em ações, não conseguiria nunca entender o perverso sistema habitacional brasileiro, que impede um cidadão de trocar seu imóvel por um melhor, depois de alguns anos de economia, simplesmente por ele já ter comprado um local horrível para poder não pagar aluguéis caréssimos que consumiriam seus recursos e acabariam com suas esperanças de comprar o próprio imóvel; o jovem casal que se espreme em um mínimo apertamento para conseguir poupar algum dinheiro com a finalidade de comprar uma moradia digna, por isso mesmo fica impedido de morar bem; e se optasse pelo aluguel, ficaria impedido de comprar um imovel, sem poupança e de repente incapaz de continuar suportando pagar um aluguel que sobe desmedidamente ano após ano; o fato é que a maior parte das crianças brasileiras vive espremida  em cubículos mínimos, convivendo com pais enlouquecidos como ratos enjaulados, e sem espaço para brincar, e, como acontecia com seu pai agora, no momento em que os filhos adultos e crescidos saem de casa, o sistema permite que o cidadão finalmente possa utilizar, após a aposentadoria, o fundo de garantia, que é dele, não é nenhum favor do governo, e o casal, agora velho, vai morar sozinho em uma boa residência, depois de ter criado os filhos em condições horríveis, ao passo que seus próprios filhos, como iria acontecer agora com Mabel e Ronaldo, vão morar em cubículos e passar as décadas seguintes enlouquecidos criando filhos em cubículos mínimos, por não poderem comprar moradia digna para viver,  até, por sua vez, chegarem à década dos cinqüenta e já não precisarem mais de moradia grande.
Você acha que o parágrafo acima está confuso? Que nada! Foi proposital para que você possa ter uma idéia da injusta bagunça bancária! Confusa é a economia tupiniquim!
Em realidade, com o dinheiro dos dois, conseguiram comprar até um bom apartamento, com dois quartos, a três quadras da praia, sem garagem e sem varanda, e seus filhos não teriam, como ela, de dormir na sala e dividir o armário de roupas com os pais.
Durante a cerimônia de casamento, Mabel teve a satisfação de separar-se definitivamente do pai. Seu nome de casada passou a ser Maria Isabel Souza Campos. Nunca mais, pensou ela, Ricardo Gonçalves terá posse de minha pessoa.
Os primeiros meses de casório forma uma diversão total, comiam fora quase que diariamente, conheceram todos os restaurantes e danceterias de Santos, até que Mabel se cansou de comportar-se como uma eterna turista em férias. Recomeçou sua rotina de estudos, conferências, palestras, e Ronaldo respondeu com sua própria agenda profissional – especialidades diferentes, locais e horários diferentes, casal separado até tarde da noite, diariamente.
As amigas começaram a comentar – encontramos Ronaldo aqui e ali, com esta, com aquela, fazendo isto, rindo daquilo, e a desconfiança bateu forte.
Quando Mabel recebeu um convite para apresentar um caso em um congresso, tudo pago, e voou para a Ásia, conversou mais com o marido por telefone do que em um mês inteiro em Santos; e recebeu tantas propostas de outros homens casados, que começou a repensar o mundo.
Chegando a casa, prensou o marido; e prensou o Genovês, que se esquivou com elegância:
- Não minto, você sabe. E também não falo da vida alheia. E, amiga, se não me caso, é porque detesto compromisso. E adoro variedade.
- Eu sei. Por isso nenhuma mulher que se preza sai com você. Nunca vi você com nenhuma colega de faculdade.
Ele a olhou de um jeito estranho, e riu.
Ela compreendeu e ficou furiosa.
- Cínico.
O estrago estava feito. Ronaldo confessou:
- Querida, exclusividade... é complicado. Se você não estiver por perto, não vou ficar sozinho.
- E eu?
- Você parece bem satisfeita com seus livros. Eu gosto de gente.
Mabel não descansou até obter um nome de Ronaldo. Depois, percebeu que este seria um primeiro entre muitos nomes. Primeiro, sentiu raiva. Depois, chorou de desapontamento. Por fim, deu de ombros.
Ronaldo, que a princípio pensou ter ganho a batalha, percebeu que perdera a esposa. Mabel nem sequer falava com ele, nem pensar em deixar-se tocar.
- O que você pretende, Mabel? Divórcio?
- Eu? Para que? Vamos perder patrimônio. É o seguinte, eu fico no apartamento, que você passa para o meu nome, e eu pago o restante das prestações. Vamos usando o consultório conjunto, em horários diferentes, somos sócios comerciais. Não vamos vender o ponto porque sairemos perdendo, e nenhum de nós conseguirá financiar outro conjunto comercial tão bom quanto. Ou: você fica no apartamento e nunca leva ninguém lá, e eu faço o mesmo, e não precisa ter outras despesas com moradia. É isto. Amigos.
Ronaldo ficou apavorado com a frieza de Mabel.
- Você nunca me amou – disse ele.
- Oh, eu achei que você poderia ser um bom pai, mas me enganei.
- Como? Você queria filhos?
- Você não? Ótimo, então me enganei completamente a seu respeito.
- Crianças dão uma despesa enorme – justificou ele – uma trabalheira, e eu não deixaria filhos em creches ou com empregadas, acho que você não pensaria em ficar em casa por alguns anos, maternando, não me parece ser o seu talento principal na vida.
- É, minha mãe me criou para vencer no mundo do trabalho. Penso que ela não foi feliz em casa, sozinha o tempo todo com uma criança e um marido autoritário. Por mais que meu pai nos tratasse bem...

- Você nunca me amou – repetiu ele.
- Você não é judeu – respondeu ela.
- Como?
- Piada particular. Judeus são fiéis. Eu suponho que sejam, não sei ao certo, que é que sei, afinal?
Mabel desistiu do amor.
Quarenta anos mais tarde, divorciados, Mabel e Ronaldo ainda dividem o mesmo consultório, em horários diferentes. São ótimos sócios, dão-se financeiramente bem. Nenhum deles tornou a casar-se e, eventualmente, saem juntos para trocar idéias, como colegas que se dão bem.
Mabel viaja muito, compra de tudo sem luxos exagerados, fala pouco, poucas vezes sai com outras pessoas, deixou as amigas de lado.
Como eu comentei no começo deste relato, ela cruzou minha existência e teve nela um papel relevante, fora do contexto desta história. Quando ela me encontra, a cada cinco ou seis anos, pergunta por Daniel. E suspira. Quando eu conto a Daniel, ele não responde.
Daniel casou-se, é bom profissional, pai dedicado, marido fiel. Se eu lhe pergunto se é fiel a sua esposa por amor ou por obrigação, ele me responde:
- Sou fiel a mim mesmo. Um homem deve passar adiando o seu legado, e trazer prosperidade e paz para sua família. Estes são os meus valores.
Eu nunca saberei se, no fundo de seu coração, há um rapaz apaixonado, machucado e infeliz. O que sei é que, a cada ano, nas reuniões de ex-alunos, eu faço o ingrato papel de mediadora – aviso quem vai este ano, Daniel ou Mabel, nunca os dois juntos.
Estou aguardando o fim desta historia, quero ver o que acontecerá, se um dia Daniel ficar viúvo. Fico pensando no dito de Freud: quem tenta esquecer seu passado, revive-o diariamente.
Pelo que pude observar na vida, não acredito que ‘a fila anda’, como diz a meninada de hoje, nem acredito pessoas sejam descartáveis.
Ser fiel a si mesmo. O que exatamente quer dizer esta frase?
Penso que a vida de cada ser humano sobre a terra deve ser a busca da felicidade.
A felicidade pessoal, no entanto, não deve estar em harmonia com a felicidade dos outros?
E aí voltamos à escolha de Buda Sakyamuni, em pé, de costas, diante da porta do paraíso (os budistas usam o termo nirvana), aberta para ele, aguardando que a humanidade supere o sofrimento, pois ele não poderá entrar enquanto ainda houver um ser que sofra no planeta.
Ah, estas questões filosóficas... liberdade, respeito, felicidade... estamos sempre em busca do melhor, e nossas escolhas nos levarão a caminhos por vezes inesperados. Tentamos e tentamos decidir o próprio destino, e a cada esquina somos surpreendidos pelo inesperado.
Ao final, como diz a sabedoria popular: o homem põe e Deus dispõe.
Certo filósofo arrogante, do tipo que acha que sabe tudo, e de cujo nome não me recordo, escreveu : quem conhece bem não se engana na esperança.
Talvez a verdade esteja no meio termo.
Meditando sobre o tema, acho que Mabel, afinal, seguiu a orientação mais moderna do pensador inglês
Willian George Ward
: O pessimista queixa-se do vento, o otimista espera que ele mude e o realista ajusta as velas.
Para onde nos levará o vento?










 





 

Nenhum comentário:

Postar um comentário