Histórias da prima Lúcia e idéias gregas de montão.

capítulo I - Sócrates

O garoto brasileiro adorava futebol e chamava-se Sócrates. Nome de craque. O menino dizia que, quando crescesse, iria ser jogador de futebol.
Um dia ele estava mexendo na estante de livros da prima Lúcia e encontrou “A Defesa de Sócrates”.
- Lúcia, eu não sabia que você gostava de futebol.
- Eu detesto futebol.
- Ué, e este livro aqui?
A prima sorriu e explicou:
- Este Sócrates aí não é o jogador de futebol que você conhece, não. Sócrates foi o maior filósofo de quantos já existiram até hoje. E filósofo, antes que você pergunte, quer dizer ‘amigo da Sabedoria’. Sócrates era um sábio que viveu há vinte e cinco séculos atrás.
Um século só já deixava o menino tonto, vinte e cinco nem dava para imaginar.
- Lúcia, conte para mim a história deste Sócrates sabido.
A prima Lúcia pensou por um instante em como falar de filosofia para um garoto de dez anos. E depois de pensar um bocadinho, ela contou esta história:
“ Há vinte e cinco séculos atrás, há tanto tempo que é até difícil para a gente imaginar, em um país chamado Grécia, uma sacerdotisa do deus Apolo afirmou que Sócrates era o homem mais sábio do mundo. Sócrates morava na cidade de Atenas, que era a cidade mais importante daquele tempo naquele pedaço do mundo. E as pessoas que queriam aprender iam para Atenas para conhecer Sócrates.
Este sábio era um homem muito esperto. Ele dizia, muito admirado, que não se considerava sábio porque não sabia o que era, por exemplo, o amor, ou a justiça, ou a coragem. Aí perguntava para as pessoas em volta o que elas pensavam sobre estas coisas e, enquanto as pessoas explicavam, Sócrates ia fazendo perguntas e mais perguntas até deixar todo mundo tonto. É até engraçado a gente ler estas conversas que pareciam dar voltas e mais voltas sem chegar a lugar algum. A pessoa acabava por perceber que ela também não sabia nada sobre o assunto. Sócrates então contava que amor, coragem, liberdade, amizade, justiça, beleza, enfim, todas estas coisas eram mistérios; todo mundo pensa que sabe o que é mas não sabe como explicar, e ele, Sócrates, não sabia nada sobre estas coisas, como todos, mas havia uma diferença.”
-Que diferença, prima?
- Sócrates dizia: “eu sei que nada sei”. A pessoa comum dá sua opinião sobre tudo, eu acho isto, eu acho aquilo, sai por aí cheia de ‘achismos’. O sábio é o homem que sabe que não sabe.
O menino pensou que ele também não sabia um montão de coisas e sabia que não sabia. Vai ver que isso já era um comecinho de sabedoria...
- O que mais Sócrates falava?
- Sócrates falava das escolhas dos homens. Porque os gregos acreditavam em um destino traçado pelos deuses e Sócrates dizia que o homem é livre para fazer o que quiser de sua vida. Um passarinho não é livre, tem de fazer um ninho, e tem de ser aquele tipo de ninho e não outro. Um pato faz o ninho à beira do lago; a águia, no alto da montanha; não podem fazer nada diferente. Um homem pode escolher. E porque um homem pode escolher, é melhor fazer as coisas certas e escolher coisas boas e úteis.
-Sabe o que eu penso do destino, prima? Penso que destino a gente não muda. Preste atenção: existe verão e inverno, sempre faz calor no verão e sempre faz frio no inverno, e a gente não pode mudar isto. Tudo é assim.
Lúcia deu ao menino um sorriso lindo:
-Você é observador. É realmente assim. A gente não muda o que está fora. A gente muda aqui dentro. – e ela colocou uma das mãos no coração e apontou com a outra para a cabeça.
- Eu não entendi.
- Vou explicar falando do verão. O homem fabrica ar condicionado, ventilador e sorvete. Uma pessoa pode passar protetor solar e sentar-se à sombra. Ou pode passar bronzeador, ficar o dia inteiro exposto ao sol e bronzear-se; mas, se ficar com bolhas na pele não poderá dizer que foi o destino. Foi a maluquice de não se proteger do sol, uma decisão dela, e ela vai ter de ser responsável por isto. Entendeu?
O menino fez uma careta:
- Mais ou menos.
- As pessoas mudam seu destino quando fazem suas escolhas. Quando os computadores surgiram, algumas pessoas se apressaram a aprender como usar estas máquinas.
- Fizeram cursos de informática – apressou-se a dizer o menino, para mostrar que conhecia o assunto.
- Estas pessoas fizeram um esforço grande e os primeiros empregos na área de informática pagavam muito bem, porque poucos entendiam do assunto. Outras pessoas se queixaram: “é muito difícil”, algumas perderam seus empregos e colocaram a culpa nos computadores. Não perceberam as novas oportunidades.
- Agora entendi. Lá na escola está cheio de menino falando mal do professor e têm outros estudando pra valer. Os meninos que reclamam não saem do lugar e os que estudam tiram as melhores notas. Então é assim que cada um faz o seu destino.
- Os poderosos da Grécia queriam que o povo acreditasse que o destino estava nas mãos dos deuses e quando Sócrates começou a ensinar que o homem é livre para escolher o seu caminho no mundo, os poderosos ficaram com medo de perder o poder e condenaram Sócrates à morte.
- Que horror! Mas, Lúcia, então isto quer dizer que, uma vez que a gente escolha, a gente só tem uma escolha? Não pode mais mudar?
-Claro que não. O seu ídolo no futebol, por exemplo, é médico.
-Sócrates é jogador de futebol e médico? Como pode?
- O Dr. Sócrates joga tão bem futebol que foi para a Copa do Mundo. Mas pode voltar a ser médico a qualquer hora, ou fazer qualquer outra coisa, o mundo dele é maior que um campo de futebol. Não há limites para o homem. Cada um faz seu mundo do tamanho que melhor lhe convém.
- Quer dizer, Lúcia, que, se eu quiser, posso ser jogador de futebol e filósofo?
-Pode, sim, meu amor.
O menino ficou pensando em seu nome, em seu ídolo no esporte e naquele grego tão feio e tão sabido. Pensou em tudo que a prima dissera, que cada um faz seu mundinho do tamanho que quer e que, já que se pode escolher, melhor escolher coisas boas, e porque não, as melhores coisas?
Na semana seguinte, na escola, o menino contou para todos os colegas:
- Eu tenho um nome famoso. Nome de jogador de copa do mundo. Nome de filósofo grego. E posso escolher ser as duas coisas ao mesmo tempo, se eu quiser, porque o ser humano é livre e responsável por suas escolhas.
Seu melhor amigo deu risada, piscou um olho para a turma e respondeu:
- Pra filósofo você leva jeito, mas pra jogador de futebol, sei não, você é meio ‘perna-de-pau’...

Perna de pau Sócrates não era, por isso ele riu da brincadeira dos amigos. Jogador de futebol era a segunda coisa que o menino mais gostava de fazer, a primeira era visitar os avós que moravam no interior em uma deliciosa casa com um jardim enorme, pomar, horta e varanda.

capítulo II - A viagem

Todo ano, os primos iam passar as férias de julho com os avós. Os três meninos tinham idades próximas e moravam em cidades diferentes: Sócrates em Sampa, Juquinha no Rio de Janeiro e Marquinho em Campinas. A prima Lúcia ia junto porque ela gostava de passar as férias com eles e também porque ajudava o vovô e a vovó a cuidar dos três garotos saudáveis, ativos e brincalhões.
Neste ano não foi diferente.
Lúcia, Juquinha, Marquinho e Sócrates foram passar as férias do meio do ano na casa dos avós. Os meninos se encontravam todos em Sampa, na casa de Sócrates. Os tios deixavam as crianças aos cuidados de Lúcia, que ia com eles de ônibus até Taiúva. A viagem era uma festa só, porque os meninos iam ‘espremendo’ a tia para tirar dela histórias e mais histórias.

Antes de irem para a rodoviária, os meninos haviam ficado na sala, assintindo televisão, enquanto os pais acabavam de verificar se nas malas estava tudo o que as crianças iriam precisar.
Quando se despediram dos pais na rodoviária, um dos meninos estava dizendo aos outros que a história do filme era ‘baseada em fatos reais’ e aí começou uma discussão que Lúcia achou muito interessante.
Os meninos faziam uns aos outros perguntas como esta:
O que faz um filme ser de mentira ou de verdade?
É de verdade porque os atores existem e trabalharam fazendo de conta que eram personagens?
Ou é de mentira porque os artistas fingem ser os personagens?
E se o filme contou a história de uma pessoa que realmente existiu, como é que fica?
Tudo o que você vê é verdade?
Onde acaba a fantasia?
Onde começa a realidade?

Lúcia acabou entrando na discussão:
- É, meninos, parece que esta coisa de realidade e ilusão não é tão simples quanto parece, não é mesmo?
Quando os meninos concordaram, ela continuou:
- Vocês podem achar a idéia engraçada, mas eu conheci uma velhinha que falava com a TV e jurava por tudo quanto era mais sagrado neste mundo que o Sílvio Santos respondia para ela! E se a gente pensar bem, esta coisa de ver e ouvir de pertinho pessoas e coisas que estão lá bem longe, do outro lado do mundo, ou que já morreram, ou que nunca existiram... é fantástico! Poderoso! Só a imaginação das crianças é mais fantástica e poderosa.
- Aposto que você vai contar uma história para nós. Vai ser uma história de verdade ou de mentira?
- Vou contar a vocês a história de um menininho que não conhecia a televisão. Nossa história aconteceu em meados do século vinte. (meados quer dizer: ali pela metade)
Este menino morava em uma pequena cidade do interior de São Paulo. Uma cidade onde todo mundo conhecia todo mundo e as casas tinham quintal com árvores, frutas e passarinhos.
- Aposto que é uma história do vovô! – disse Juquinha.
- É mesmo, querido. É uma história que o vovô me contou que aconteceu com ele quando ele era pequenininho como vocês.
- Nós não somos tão pequenininhos assim! Eu tenho quase nove anos – disse Marquinho.
- Pois acho que o vovô tenha exatamente a sua idade quando aconteceu esta história.
- Pare de atrapalhar e deixe a prima contar a história – reclamaram os outros dois.
E Lúcia contou:

‘Vocês, crianças do século XXI, não imaginam como era a vida antes da TV, do telefone, do computador e dos arranha – céus.
As pessoas se visitavam para saber das novidades e contar ‘causos’. Ao fim do dia, todas as famílias sentavam-se na varanda das casas ou nas calçadas a prosear com os vizinhos. Os vizinhos, aliás, se conheciam pelo nome.
As crianças brincavam com tudo o que se podia pegar, jogar ou imaginar: pião, bola, esconde-esconde, pega-pega, brincava-se de roda, pulava-se corda e amarelinha, era um brincar que não acabava mais. Nos dias de chuva ou frio, brincava-se de passa-anel, memória, bafo, bolinhas de gude, ou sentava-se ao redor de algum adulto contador de histórias e a imaginação viajava até a terra do faz de conta, onde, em um tempo em que os animais falavam, era uma vez...e a criançada, quietinha, quase nem respirava de tanta emoção, a torcer pelo herói, será que o porquinho escapa do Lobo Mau? E brincava-se com as histórias! Os meninos brandiam as réguas, que eram as espadas para lutar contra os piratas do Capitão Gancho, as meninas penduravam cestinhas no braço e iam cantando visitar a vovozinha que morava do outro lado da floresta... Cada graveto achado no chão era uma varinha de condão perdida por alguma fada e a mágica durava até a mamãe gritar: ‘hora do banho, já pra dentro, criançada’.
Telefone, havia um, na farmácia, só usado mesmo quando necessário.
Televisão, ninguém sabia o que era, mas todo mundo falava que lá na capital, havia umas vinte. Havia um aparelho bem no centro da cidade em exposição para quem quisesse ver, e as pessoas faziam fila nas lojas para encomendar o tal aparelho. A imagem era em preto e branco, às vezes saía do ar – quer dizer, a tela de repente ficava branca e fazia um chiado esquisito. Um verdadeiro horror! Mas toda a gente queria, porque era novidade.
O menininho de nossa história tinha aí uns oito anos e ia passar as férias na casa de um tio, na capital. E o tio escrevera que comprara uma televisão!
O menino nem dormia de curiosidade, e na viagem para Sampa perguntava insistentemente se o tio ia deixar o sobrinho olhar a televisão.
E, chegando à casa do tio, lá na sala de estar, bem no centro, no lugar de honra, a grande caixa de madeira – quieta e escura. O tio sorriu para o menininho e explicou:
- A TV só começa mais tarde. Agora vamos comer que vocês chegaram com fome da viagem, não?
Pois naquele tempo, os programas tinham hora de começar e de acabar. À noite, as pessoas dormiam – ou supunha-se que deviam dormir, o que dá no mesmo.
Os adultos trocavam abraços, presentes e notícias. O menino sentou no sofá e não tirava os olhos do estranho móvel.
A tia, enfim, girou um botão. Ao som do Hino Nacional, um indiozinho de cocar apareceu desenhado na telinha.
- É isso aí a televisão. O programa das crianças começa assim que acaba o Hino Nacional.
O menino só ouvia o Hino Nacional na escola, em pé, todo empertigado, mão no peito, olhando a bandeira sendo hasteada no mastro. A tal da televisão, então, ganhou um ar ainda mais importante.
De repente, o indiozinho desenhado na tela sumiu!
As imagens começaram a mexer e uma moça olhou diretamente nos olhos do menino e falou:
- Bom dia, amiguinho! Você, que está aí nos ouvindo...
O menino arregalou os olhos e ficou durinho no sofá.
- Você mesmo, que está aí sentado no sofá, venha brincar conosco!
O menino gritou e saiu correndo, apavorado:
- Papai! Mamãe! O povo de dentro da televisão fala com a gente! A moça falou comigo! Disse que está me vendo! E quer que eu entre na televisão para brincar com ela...
E o menino tremia, tremia...
O que você acha que o vovô pensou?’

- O que eu estou pensando é que o vovô deve ter feito uma cara muito, muito engraçada... – disse Sócrates, e todos os meninos riram.
O ônibus estava chegando a uma parada, então todos desceram, mexeram as pernas, foram ao banheiro, tomaram um lanche e escovaram os dentes antes de voltar ao ônibus, porque a tia Lúcia havia tido o cuidado de deixar as escovas e pastas bem à mão, para todos irem dormir com os dentes limpos.
- Não quero saber de bafo de dragão do meu lado – disse ela.
Mas ainda era muito ceda para ir dormir e os meninos pediram a ela que contasse outra história para o tempo passar mais rápido, como os adultos costumam dizer.
Marquinho havia trazido um livro que ganhara no Natal. Um livro com gravuras bonitas e histórias de um autor chamado Hans Christian Andersen.
Lúcia achava estas histórias muito tristes, mas não disse nada, até que Marquinho pediu a ela que contasse a história A Pequena Vendedora de Fósforos. Ela disse:
- Eu conheço duas histórias com este nome. Em uma delas, há uma vovó realmente carinhosa e inteligente. E na outra, a vovó é uma pessoa comum e não sabe como ajudar a neta. Qual dessas histórias vocês querem ouvir?
Os meninos olharam uns para os outros, meio confusos. Duas histórias? Só podia ser algum dos truques da prima. E disseram:
- É claro que queremos a história da vovó carinhosa.
Lúcia então contou aos meninos a seguinte estória:
“Era um vez uma pequena vendedora de fósforos, que morava com sua avó. Eram pobres e muito unidas, até o dia triste em que a velhinha morreu e a menina foi expulsa do lugar onde viviam. Era uma noite de inverno, véspera de Natal. A neve caía linda e gelada do céu. A menina andou pelas ruas sem saber onde ir, observando as vitrines das lojas e espiando pelas janelas as salas decoradas com pinheiros enfeitados, pilhas de presentes e mesas fartas.
Quando a noite chegou, ela escondeu-se em um beco e encontrou em seu bolso a última caixa de fósforos. Acendeu um deles para se aquecer. A chama era pequena e logo se apagou, mas durante um curto período de tempo a menina lembrou-se da lareira aconchegante diante da qual ela e a avó muitas vezes haviam conversado, saboreando uma fumegante xícara de chá. Acendeu então outro fósforo, e à luz da pequena chama pareceu-lhe enxergar de novo a amorosa vovó, e chamou:
- Vovó, vovó, estou tão sozinha, vovó! Não sei o que fazer.
E a vovó respondeu:
- Minha netinha querida, você tem uma caixa de fósforos, procure uns gravetos e faça uma fogueira para se aquecer.
O fósforo se apagou e a menina seguiu a orientação da avó. Procurou por ali gravetos, juntou todos eles em um monte e acendeu uma fogueira que a manteve aquecida até a manhã seguinte, quando ela foi encontrada por alguém que lhe deu abrigo.”


Os olhos do Marquinho faiscaram de riso:
- Você contou tudo errado, Lúcia. A estória que está neste livro é diferente.
- Ah. Isto! – Lúcia pegou o livro, folheou rapidamente suas páginas e esclareceu – Esta é a estória da Vendedora de Fósforos Boba. Você me disse que queria ouvir a estória da Vendedora de Fósforos Esperta.
- Você não gosta das histórias do Andersen?
- Eu gosto, sim, muito. São lindas histórias, muito tristes, porque o autor via este mundo como um lugar onde as pessoas boas sofriam. Mas eu gosto de contar para as crianças um outro tipo de história. Eu penso de um jeito muito diferente.
- O que você pensa, Lucinha?
- Você gosta de montar quebra-cabeças, Marquinho?
- Quem não gosta?
- E daquelas revistinhas cheia de probleminhas, como ligar os pontos, palavras cruzadas e charadas?
- São as minhas preferidas – disse o Juquinha. – Eu também gosto de descobrir os truques que os mágicos usam, porque eles não contam, e é muito legal quando a gente descobre como eles fazem!
-E como seria se, antes de vocês quebrarem a cabeça para resolver os problemas, alguém dissesse a resposta, para que vocês não se cansassem e não perdessem tempo com isto?
- De jeito nenhum! O gostoso é descobrir sozinho. Tiraria toda a graça da coisa.
- Pois então, meninos, vou dizer a vocês o que eu penso do mundo. Para mim, o mundo é como um grande parque de diversões, onde a gente pode se divertir a valer, ou morrer de medo e não andar em brinquedo nenhum. Eu penso que este é um mundo para as pessoas inteligentes, cheio de desafios. Não há lugar para os tolos. Viver é como estar a todo momento resolvendo quebra-cabeças e palavras cruzadas. Nós temos de encontrar as soluções.
- E isto a garotinha podia ter feito sempre, quer dizer, a solução estava lá no bolso dela o tempo todo.
-Se você ficar preocupado em procurar o culpado pelas suas tristezas, vai perder a chance de encontrar a solução para o seu problema. – disse Lúcia e pensou, sem falar nada aos primos ‘ Acho que isso está escondido atrás da frase de Cristo sobre perdoar os inimigos; talvez ele quisesse dizer que seria mais útil a cada um procurar as soluções dos próprios problemas.’
Os meninos encostaram-se sorrindo nos travesseiros de viaggem, jogaram um beijo de boa noite para a prima e adormeceram.

capítulo III - As melhores coisas da vida.

De manhã cedo chegaram a Taiúva, que encontraram em polvorosa. Os avós estavam esperando por eles na rodoviária.
Depois dos abraços apertados, dos beijinhos e de uma boa prosa enquanto vovô acomodava as malas no bagageiro, acomodaram-se todos na van e partiram. Vovô entrou por uma rua secundária e parou antes de chegar à rua principal e disse:
- Desçam, meninos! Vamos ver o desfile.
E, olhando para frente, os três meninos gritaram em coro:
- O circo!
Chegara um circo em Taiúva. Esse era o assunto do momento.
Pela rua principal, desfilavam os malabaristas, os elefantes e todos os demais atores com roupas brilhantes e coloridas ao som de uma banda de música. Os garotos da cidadezinha imitavam as cambalhotas e as piruetas dos palhaços, na maior alegria.
Para os primos, criados entre a televisão e o computador, circo era novidade.
- Quero ver o mágico – disse Juquinha.
- E os trapezistas – sussurrou Marquinho.
- Vovô e vovó, vocês levam a gente ao circo? – perguntou Sócrates.
- Eu até já comprei as entradas, meninos. – e vovô bateu no bolso da camisa, aonde apareciam as pontinhas dos ingressos.
- E a gente pode comer cachorro-quente?
- E pipoca?
- E algodão doce?
A manhã custou a passar. A molecada, na rua, brincava de circo, pendurando-se nas árvores, equilibrando gravetos no nariz, jogando laranjas para o ar. Juquinha, que conhecia alguns truques com cartas, fez sucesso mostrando suas habilidades.
Ao fim da tarde, uma fila, comprida como cantar de grilo, formou-se em frente às tendas do circo.
Parecia festa. Música, luzes coloridas, comida gostosa e muitas gargalhadas.
Vieram palhaços, o mágico, animais, malabaristas, trapezistas. Depois de tudo o que a criançada já conhecia, houve um teatro de sombras.
As luzes se apagaram, e, por detrás dos lençóis brancos, uma história foi contada pelas silhuetas das pessoas e objetos que se movimentaram em frente à luz forte. Eram perfeitos os contornos das casas, dos animais, de um avião, de um trem.
Quando o espetáculo terminou, os olhinhos dos meninos brilhavam como as estrelas no céu e os avós pareciam tão jovens quanto os netos.
Ao voltarem para casa, vovô contou que, quando ele era menino, não havia luz elétrica no sítio onde ele nascera, e as pessoas, à noite, costumavam divertir-se projetando nas paredes sombras que faziam com as mãos e braços em frente a luz das velas.
- Vovô, mostra como se faz?
Vovó pegou uma vela no armário e acendeu-a sobre a mesa da sala. Os dois velhos fizeram gestos com as mãos e os meninos adivinhavam:
- É um cachorrinho!
- Um pato!
- Uma cobra!
- Um pássaro voando!
Marquinho trouxera uma máscara de pirata que usara no Carnaval. Pegou a máscara na mala e ficou decepcionado quando a colocou contra a luz da vela:
- Ah, não dá para ver que é um pirata, só vejo os buracos dos olhos! Somem todas as cores e formas!
- Você teria de ser um mágico para inventar uma sombra colorida. – gritou Juquinha.
- Que coisa curiosa! – observou Sócrates – Por que o teatro das sombras parecia ser tão bonito se é tão pobre?
- Eu acho que é por ser diferente .
- É porque as sombras são tão simples que as pessoas entendem tudo rapidinho, sem se distrair com as cores e outros detalhes...
- Não, não! É porque cada um pode imaginar os detalhes do jeito que quiser.
Os meninos falavam quase ao mesmo tempo. Vovô acendeu a luz, apagou a vela e comentou:
- Juquinha, você percebeu que não é tão simples assim comandar as sombras, não é mesmo? Parece simples, mas não é.
Vovó completou:
- As sombras que fizemos aqui em casa foram um pouco diferentes das do circo.
- Aqui a gente viu a vela, as mãos que se mexiam.... – falou Sócrates – Lá no circo era como se as sombras tivessem vida própria, porque a gente não via os atores, era como se as sombras estivessem presas dentro do palco.
Marquinho perguntou de repente:
- E se o homem de sombra fosse um homem de verdade? E se esse homem de sombra saísse para fora de repente e visse as pessoas do circo?
Fez-se silêncio.
A prima Lúcia inclinou-se e prestou muita atenção nas respostas dos meninos.
- Sei lá, uma criatura de sombras....acho que ele levaria um susto vendo um mundo colorido – disse Marquinho.
- E se ele olhasse no espelho, talvez visse as coisas que se escondem na sombra, como o nariz, as rugas... – falou Sócrates.
- Por quê? Você acha que a sombra ia deixar de ser achatada? Será?... – Juquinha estava confuso.
- Bem, se eu saísse de uma caixa de sombras e visse os artistas do circo, não ia mais querer voltar, porque o teatro de sombras ia ficar parecendo uma coisa muito sem graça! – respondeu Sócrates.
- Ora, mas não ia ser legal o homenzinho de sombra viver no circo sendo sombra, eu acho que o homenzinho ia querer ficar colorido como todos os outros aqui de fora. – comentou Marquinho.
Neste momento, Sócrates observou que a prima Lúcia estava com uma expressão pensativa, bem conhecida de todos os primos. Ele cutucou os primos:
- Quando a prima fica assim...
- Senta, que lá vem história!
E os meninos bateram palmas e pediram:
- His-tó-ria! His-tó-ria! His-tó-ria!
A prima Lúcia sabia como contar uma história melhor do que qualquer outra pessoa que conheciam. Até a vovó apreciava ouvir a neta.
Lúcia sorriu para os meninos e começou:
- Este teatro de sombra me lembrou de uma história muito, muito antiga...
- Muito antiga quanto? – perguntou Sócrates – Vinte e cinco séculos?
- Vinte e cinco séculos, querido – respondeu Lúcia – Na verdade, esta história foi contada pela primeira vez lá na Grécia, por Platão, que foi aluno daquele filósofo que tem o seu nome, Sócrates.
- A gente já conhece esta história – disse Juquinha – O primo contou para a gente que ele tem nome de sábio. E este Platão foi outro sábio, então?
- Não é muito sábio pra pouca Grécia? – brincou Marquinho.
Vovô disse:
- Marquinho, a Grécia foi a terra dos filósofos. Acho até que havia lá na Grécia mais filósofos que gregos....
- Como é que é? – todos riram de sua expressão confusa de Marquinho.
Vovó demonstrou preocupação:
- Lúcia, você não acha que os meninos são muito crianças para ouvir histórias filosóficas?
- Eu acho que as crianças são bem inteligentes, vovó, são mais espertas do que os adultos pensam.
Os três meninos concordaram, e insistiram:
- His-tó-ria! His-tó-ria! His-tó-ria!
- A história de chama:
O mito da caverna.

Havia uma caverna, onde pessoas estavam sentadas de costas para a saída, acorrentadas, de tal forma que só podiam ver as sombras das coisas que passavam na frente da luz que vinha lá de fora; sombras que eram projetadas na parede que elas podiam ver.”
- Como os personagens do teatro das sombras – sussurraram entre si os meninos.
“As pessoas acorrentadas ficavam ali, um dia depois do outro. Havia outras pessoas que tomavam conta da caverna e que Platão chamou de Amos da Caverna. Amo é o mesmo que dono. Os amos da caverna davam ordens e tomavam conta dos que estavam lá acorrentados.
Mas, de vez em quando, uma dessas pessoas conseguia se desamarrar, olhava para trás e via a entrada da caverna. Esta pessoa fugia, saía da caverna, e, lá fora, ficava ofuscada pela luz do sol. Depois percebia as cores, as formas, via todas as plantas e bichos, arco-íris, chuva, coisas que não existiam dentro da caverna.
Platão dizia que, se esta pessoa voltasse para dentro da caverna e contasse para os outros sobre o mundo lá fora, a maioria dos acorrentados diria: ‘que bobagem! Você sonhou! Você enlouqueceu!’ E a maioria continuaria lá, sentada, olhando as sombras, obedecendo aos amos da caverna, sem acreditar que o mundo fosse maior do que aquilo que elas viam todos os dias.”

Lúcia calou-se. Os meninos olhavam uns para os outros com cara de ‘quero mais’. Até que Sócrates não agüentou:
- Conte o resto, prima. A gente sabe que tem mais.
- Não, a história termina aqui. O que Platão explicava a seus alunos é o seguinte: este mundo é a caverna. As pessoas estão acorrentadas nas coisinhas de todo dia e levam vidinhas monótonas e pobres. Os amos da caverna são os governantes dos povos. O filósofo é o que sai da caverna.
Platão dizia que este mundo, que toda gente diz ser o mundo real, é o mundo das sombras. O verdadeiro mundo é o mundo das idéias.
-Seria assim como o teatro das sombras, que é um mundo de faz-de-conta no picadeiro do circo. – exclamou Juquinha.
- Mas o mundo do circo é só outro mundo de faz-de-conta dentro do nosso mundo. – disse Marquinho.
- E o nosso mundo, por sua vez, não é um mundo de verdade, porque só vemos as sombras do mundo verdadeiro que é este tal mundo das idéias. – completou Sócrates.
- Isto está ao contrário – disse Marquinho – Eu primeiro olho para uma pedra, e só depois faço idéia do que é pedra. Não é assim? Primeiro as coisas, depois as idéias?
Os meninos ficaram pensando, e Lúcia tomou a palavra:
- Platão diz que tudo o que existe no mundo existiu antes no pensamento de alguém. Por exemplo: esta cadeira. Antes de existirem cadeiras, as pessoas sentavam no chão, em pedras, até alguém imaginar juntar pedaços de madeira e fazer uma cadeira. Primeiro existiu a idéia de cadeira no mundo das idéias e então alguém construiu a cadeira no mundo das sombras. É assim com tudo. Se existe um balde, um fogão, uma história, é porque alguém imaginou primeiro. As coisas não se fazem do nada, as coisas surgem das idéias de alguém. Entenderam?
- Eu nunca havia pensado assim – disse Juquinha – Se eu quero fazer uma das minhas mágicas, eu primeiro penso como vou fazer. Quando vejo uma coisa bonita e resolvo fazer um desenho, primeiro eu penso de que jeito eu vou riscar o lápis no papel. Eu primeiro penso no que quero fazer acontecer.
- Mas... se este é o mundo da caverna... – disse Marquinho - ...quer dizer que o mundo de verdade, o tal mundo das idéias, deve de ser muito mais bonito do que tudo isto que a gente vê!
- Então, eu quero sair da caverna! – decidiu Sócrates – Platão contou como é que a gente sai da caverna?
Lúcia respondeu:
- A primeira coisa é saber que se está na caverna. Isto você já sabe. A segunda coisa é procurar a saída, isto é o que o filósofo faz quando passa a vida buscando sabedoria. O terceiro passo é o mais difícil: ter coragem de abandonar a segurança de estar protegido em um lugar conhecido e aceitar as novidades que vão sendo descobertas pelo caminho.
Vovô piscou um olho para vovó:
- É, esta Lúcia tem um jeitinho todo especial de falar de coisas sérias com as crianças.
- Maravilhoso! É um aventura! – falou Sócrates.
Juquinha já estava pensando em outra aspecto da história:
- Lúcia, estes tais de amos da caverna, eles também não sabem que existe um mundo de verdade lá fora, sabem?
E Marquinho interrompeu:
- Um professor de escola, que fica ensinando aquelas coisas daquele tal livro daquele tal jeito e afirma que só o tal jeito dele é que é o certo e que nada pode ser diferente, é um dos amos da caverna, então?
Vovó entrou na conversa:
-Marcos, um professor recebe ordens, todos os professores do país todo, em todas as escolas, têm de ensinar a mesma coisa do mesmo jeito, então o amo da caverna seria o Ministro da Educação, que dita as regras para todo o país.
Lúcia continuou:
- É possível que um amo da caverna conheça a verdade, ou não. Platão nos diz que, na História da Humanidade, existem épocas felizes, em que os dirigentes dos povos dirigem a caverna pensando no que é bom para todos. E existem épocas trágicas, em que os dirigentes dos povos só pensam em seus próprios interesses, períodos onde existe escravidão, guerras etc
- Seria bom se os amos da caverna saíssem e levassem todos lá para fora com eles.
- Bem, este seria o mundo ideal. Se os dirigentes dos povos fossem filósofos, eles saberiam como sair da caverna e como conduzir as pessoas para a luz. E Platão escreveu um livro muito bonito, que vocês poderão ler quando crescerem mais um bocadinho, sobre como seria um mundo governado por filósofos.
-Ah, conte um pouquinho para nós.
- Em tal mundo, todos aqueles que seriam governantes, deveriam estudar muito durante toda a vida para estar preparados para SERVIR ao povo. A função de um governante, para Platão, é buscar o bem estar do povo. É uma grande responsabilidade, nem todos tem capacidade para governar, para liderar.
- Eu vou ler este livro. Como se chama? – perguntou Sócrates, tirando do bolso um bloquinho que sempre trazia consigo, para anotar coisas interessantes.
- A República.
Marquinho disse:
- Eu pensava que filosofia era uma coisa séria e chata que não servia para nada.
- Assim como elucubrações e especulações áridas sobre temáticas eruditas? – perguntou Lúcia, muito séria.
- Credo, o que é isso?
- Um jeito de falar difícil para ninguém entender e fazer qualquer assunto tornar-se sério e chato. – respondeu Lúcia.
- Ah, você está brincando! – suspirou Marquinho, feliz.
- E Deus? Platão falava de Deus? – perguntou Juquinha.
- Diga deuses, no plural – respondeu Sócrates.
Lúcia cortou o assunto:
- Esperem aí, meninos! Nós estamos falando de filosofia, não de religião.
- Bem, não é a mesma coisa? Os filósofos não perguntam quem criou o mundo? Por que nascemos? Não é isto a primeira coisa que uma pessoa quer saber?
- Puxa, meninos, vocês são mesmo espertos.
Vovô e vovó se remexeram nas cadeiras, porque aquela questão de religião, naquela família, era assunto delicado. O pai de Juquinha era budista, a mãe de Marquinho era judia e o pai de Sócrates era kardecista, enquanto todos os filhos de vovô e vovó haviam sido criados no catolicismo. Lúcia declarava que, em todas estas religiões, havia dois pontos em comum: respeitar o próximo e fazer o bem. Segundo ela, e a família inteira concordava, este era um bom começo e um excelente fim para qualquer conversa sobre Deus.
Nesta noite, Lúcia falou:
- É verdade que os primeiros filósofos gregos falaram da criação do mundo. Diziam coisas assim: ‘no princípio era o fogo’ ou ‘tudo começou na água’ ou ‘os números são o princípio de tudo’...
- Os números???
- Curioso, não? O fato é que todas estas coisas não devem ser levadas ao pé da letra, são símbolos.
- Que coisa de símbolo é esta? – Marquinho parecia confuso.
Lúcia pensou em como iria explicar para eles o que é um símbolo.
- Meninos, vamos fazer um exercício mental? Eu quero que vocês entendam que é difícil e até perigoso a gente querer compreender um outro povo, sem poder conversar com eles, pois ,a final, estes povos antigos estão mortos agora e não podem nos corrigir.
- Que exercício é esta?
- Imagine que um marciano descesse na Terra, visse nossos quadros nos museus, pinturas nas igrejas, cartões de Ano Novo. O marciano afirma: o povo da Terra adora pombos.
- Pombos? – os meninos riram.
- Sim, o deus pombo da Paz. - continuou Lúcia – O pombo também é chamado Espírito Santo, aparece no batismo de seu filho Jesus e faz parte de uma tal Santíssima Trindade.
- A gente não adora pombos! – protestaram os meninos.
- E o Espírito Santo não é um pombo de verdade! – embatucou Marquinho.
- Um símbolo – completou Lúcia – Como aqueles cartões de Ano Novo em que se escreve embaixo PAZ.
- Ah, agora, sim, estou entendendo. – disse Juquinha.
- Este marciano – continuou Lúcia – também poderia pensar que adoramos o Deus Coelho, que bota ovos de chocolate.
- Papai Noel poderia ser uma divindade que desce de trenó uma vez por ano e dá presentes para as crianças. Agora eu entendi. – disse Marquinho.
- Agora vou dizer o mais importante – disse Lúcia – Eu quero que vocês prestem bastante atenção naquilo que a gente não percebe porque a gente faz todo dia e considera normal, e quem vê de fora enxerga melhor do que nós.
Ninguém entendeu, mas Lúcia continuou:
- O nosso marciano leu nos jornais sobre as ‘catedrais do consumo’, que é como alguns jornalistas chamam os nossos centros de compras, e aí o nosso ‘etezinho’ escreve: o povo da Terra adora o Deus Dinheiro. Há rituais como ‘olhar as vitrines’ e objetos sagrados como moedas e cartões de crédito.
Fez-se uma pausa bem longa até que os meninos e os avós sorriram. Juquinha refletiu um pouco mais e sugeriu:
- Este marciano poderia dizer: os pais do planeta Terra não gostam de crianças, pois colocam seus filhos em prisões chamadas escolas, onde guardas chamados professores torturam as coitadinhas com uma tal de lição de casa.


- Você pegou a idéia – disse Lúcia – Eu espero que sua escola seja boa, seu preguiçoso! Você não pensa realmente isso da escola, pensa?
- Eu estou brincando – riu Juquinha – Isto do deus dinheiro foi genial. Eu acho que também há o deus computador, com um ritual chamado jogo. Quem não conhece o nosso jeito de viver, pode bem pensar estas coisas absurdas.
- Mas o que a gente pode pensar de errado sobre os povos antigos, prima? Afinal , nós não somos marcianos, e sim gente como eles.
- Já cometemos enganos, sim, querido. Imagine que um desses povos antigos fizesse estátuas e pinturas de gatos, como nós também fazemos. Entre este povo o gato seria usado como um símbolo, como nós usamos a pomba. Então chega lá o arqueólogo, que é um cientista que estuda os povos antigos, descobre uma cidade antiga com muitas fotos e estátuas de gatos e afirma: eles adoravam o deus gato.
- Eu seria uma adoradora do deus pato – riu vovó, que colecionava estatuetas e objetos variados com forma de pato, desde porta- guardanapos até enfeites de jardim.
- Bem agora nós entendemos que um símbolo é uma maneira de mostrar o que não se explica. – exibiu-se Marquinho.
Voltando ao assunto original, a prima encerrou:
- Ninguém explica Deus. Deus é um mistério. E aí um desses filósofos gregos complicou tudo, porque no modo dele pensar haviam sido criados: o mundo, os deuses e os homens; os deuses são perfeitos, os homens imperfeitos.
- Ué... então, para ele, quem criou o mundo?
- E para que serviam os deuses?
Vovó exclamou:
- Lúcia, quero ver como você vai sair desta confusão!
- Era mesmo uma confusão, meninos – disse Lúcia – Na Grécia havia várias escolas de filosofia e cada uma dessas escolas queria entender como funcionava o mundo de um jeito diferente fazendo as mesmas perguntas que estão sem resposta até hoje: como surgiu o universo? e de onde viemos nós?
Sócrates falou:
- Aposto que aí surgiu Sócrates e resolveu tudo. Sócrates disse ‘eu sei que nada sei’ e ‘este é mesmo um mundo cheio de mistérios’.
- Correto – concordou Lúcia – E...
- E... o quê?
- Continue.
- Ah, eu não sei! Eu só sei que nada sei! – defendeu-se o menino Sócrates.
Todos riram e Lúcia continuou:
- O povo grego era um povo prático. A esperteza de Sócrates foi colocar a sabedoria para ser praticada na vida de todos os dias. Uma filosofia prática, isto os gregos podiam entender e gostar.
- Como é que é?
- O filósofo Sócrates, como meu priminho Sócrates disse, colocou um ponto final na discussão sobre os mistérios fascinantes do universo. Por mais interessante que sejam estes mistérios, Sócrates reconheceu humildemente sua ignorância a respeito e resolveu tornar a filosofia uma atividade útil e estudar o homem. O que o homem pensa, como se comporta, como se reúne em sociedade. Sócrates estudou, no homem, o que ele achava mais interessante: o pensamento. A forma como um homem pensa decide sua vida pelas atitudes que ele vai tomando. No tempo de Sócrates, a filosofia tornou-se ‘a arte do bem viver’.
- Puxa, que jeito bonito de dizer. A arte do bem viver. Está aí uma coisa que eu quero aprender. Já descobri porque Sócrates ficou famoso. Ele ensinou o que todos queremos saber. Todos nós queremos ser felizes. Todos nós queremos viver bem.
- Aposto que não é fácil –disse Juquinha – Porque se fosse, não haveria nenhum problema no mundo de hoje, nem fome, nem guerra, nem roubo nem nada de ruim.
- Eu quero saber mais sobre a arte do bem viver – disse Marquinho.
-Eu também.
-Eu também.
Lúcia continuou:
- Sócrates começava por dizer que o que faz o homem diferente de um animal é o pensamento.
- Porque ele pode escolher – disse Sócrates – E pode escolher as boas coisas da vida.
- E o que são estas boas coisas da vida, menino sabido? – perguntou Lúcia.
- Eu tenho muito vontade de dizer brinquedos e doces, mas aposto que você vai dizer que não é isto – resmungou Juquinha.
- Para mim – disse vovô – um homem precisa de bem poucas coisas para ser feliz: ar puro, água limpa, espaço para morar com conforto, bons amigos e este céu estrelado para admirar nas noites claras.
- E o que o Sócrates dizia? – perguntou Marquinho.
Lúcia olhou para Juquinha:
- Antes de dizer o que Sócrates dizia, eu quero saber do Juquinha o que ele acha que eu vou dizer quanto a brinquedos e doces.
- Você vai dizer que brinquedo tira o lugar de estudo.
- E tira?
- Não nas férias, nem aos domingos.
- E doce?
- Doce dá cárie, diarréia, deixa o guloso gordo e tira o lugar da comida de verdade, que tem lá umas coisinhas invisíveis chamadas vitaminas, diz a minha mãe.
- E o que VOCÊ pensa?
- Eu? Ah, Lúcia, não vale! Claro que eu sei que uma criança não pode viver só de doces e brinquedos. É preciso estudar um pouco, e, para ter saúde, é preciso comer frutas e um pouco de salada todos os dias.
- E se puder escolher? Sozinho? Amanhã você vai escolher o que vai fazer com o seu dia. O que vai ser?
- É claro que eu vou comer comida de verdade porque quero ter saúde, mas vou comer sobremesa porque é gostoso. Vou brincar muito porque estou de férias. Vou ajudar a arrumar o meu quarto e vou trabalhar um pouco na horta, porque eu quero ajudar com meu trabalho e porque eu gosto da vovó e do vovô, não quero que eles se cansem demais por nossa causa e também porque eu fico feliz aqui dentro – e ele apontou o peito – quando faço uma coisa útil, mas acho que fico feliz é porque o vovô sorri para mim, e não porque eu seja um menino grande e responsável.
Todos riram. Vovô beijou e abraçou Juquinha.
Sócrates observou:
- Espere aí, pessoal! Vocês viram o que Lúcia fez? Encheu o Juquinha de perguntas! Isto é o tal método socrático, prima? Porque você disse que Sócrates fazia isso, enchia seus alunos de perguntas, não?
- Isto de fazer perguntas é só o começo do método socrático. Tanto Sócrates como Platão faziam perguntas a seus alunos. Platão dizia que, quando o mestre pergunta, o discípulo, ou aluno, descobre que está apenas recordando o que já sabia. Como o nosso Juquinha aqui, que sabia muito bem o que é bom de comer e de fazer, e até o motivo..
- Estou vendo que as tais boas coisas da vida não são exatamente o que a gente gostaria que fossem as boas coisas da vida. – suspirou Marquinho.
- Se você vivesse de comer doce, iria enjoar e ficar doente – protestou vovó.
- Isso é verdade, vovó, eu ia enjoar, ficar doente e você ia fazer uma sopa bem gostosa para mim. – respondeu o neto.
- Bem, Marquinho, existem coisas que são boas só no começo, mas depois causam problemas, como os doces. Então, afinal de contas, não são coisas realmente boas. Porque uma coisa que é realmente boa, é boa sempre.
- Como a sopa da vovó? – disse Marquinho – Ninguém ficará doente comendo sopa todo dia.
- Então esse é o ponto importante – notou Sócrates – As coisas boas são aquelas que são sempre boas. Existem as coisas que parecem boas, mas com o tempo trazem mal resultado.
- Ah! – disse Juquinha – O que as pessoas grandes chamam de diversão é quase tudo ruim, veja só: bebida, eu não suporto bêbedo; cigarro, fede e provoca doença; música alta, a mamãe diz que com o tempo as pessoas que ouvem música alta ficam surdas; passar a noite na farra, no dia seguinte o sujeito está cheio de olheiras...dorme em cima da prova ou perde a hora de ir trabalhar e fica um poço de mau humor. Pelo menos é o que eu vejo no meu irmão mais velho.
- Ah, mas eu não concordo com isso, não! – retrucou Sócrates - As coisas que eu chamo de diversão são realmente boas: jogar futebol, nadar, cinema, histórias da prima Lúcia...
Os outros primos sorriram.
Vovô comentou:
- Estou percebendo que meus netos estão entendendo muito bem o que os filósofos gregos chamavam de ‘a arte de bem viver’. É ter um prazer sadio – e vendo a careta do Marquinho, vovô explicou: - é saber se divertir com coisas que só trazem o bem.
- Existem coisas que nos trazem muito bem, mas são conquistadas com trabalho duro, e no princípio parecem difíceis – acrescentou Lúcia.
- Ih, aposto que ela vai falar da escola. – disse Marquinho.
- Falemos então da escola, Marquinho. – Lúcia aceitou a provocação – Se você não estuda, qual é a alternativa? Aqui no vizinho temos um exemplo: dois rapazes que detestam escola.
Marquinho disse:
- Eles trabalham no corte da cana, Lúcia. Vivem sujos, de roupas velhas, cheirando a mato; levantam de madrugada e comem marmita fria. Nem se pode conversar com eles, porque eles são muito burros, não têm assunto nem com a gente, a criançada. A vida deles não é nada interessante. É, eu prefiro a escola, sim.
- E quanto Sócrates cobrava pelas suas aulas?
- Que eu saiba, Sócrates ensinava na praça pública, de graça, para quem quisesse ouvir.
- E do que ele vivia?
- Está aí uma coisa para vocês me ajudarem a pesquisar. Porque eu não sei tudo. Eu imagino que ele deveria receber alguma espécie de aposentadoria, mas não sei ao certo, porque quando jovem, Sócrates foi soldado, lutou nos campos de batalha contra os inimigos de Atenas, dormiu debaixo das tendas, comeu a ração dos soldados em volta da fogueira, observou e conversou com toda espécie de homens. Depois, quando ele conheceu a vida e sabia sobre o que falava, é que saiu a ensinar o que aprendera.
- Então ele deveria ser muito pobre. Um soldado não devia ganhar muito, não é?
- Bem, eu não tenho idéia. – confessou Lúcia. – Os soldados eram muito importantes nas sociedades antigas. Sei que Sócrates gostava da vida simples, que torna o homem forte. Ele dizia não ser escravo do estômago, do prazer ou do sono. Suas necessidades eram poucas. Para ele, a simplicidade era a chave da felicidade. Quanto menos necessidades uma pessoa tem, mais feliz ela é. E como dizia o vovô, um homem não precisa muito mais que água limpa, ar puro, espaço, comida, amigos.
- Eu preciso de alguns brinquedos – insistiu Marquinho.
- E eu confesso que preciso de livros – afirmou Lúcia.
- Se todo mundo na Grécia era filósofo, então não havia ricos? – perguntou Juquinha.
- Não eram todos filósofos! – protestou Lúcia – Havia muitos filósofos, muitas escolas de filosofia; e quem quisesse aprender, aprendia. Muita gente praticava a filosofia. Outros preferiam outro estilo de vida. Sempre há quem prefira beber, roubar e fazer tolices, como em toda parte. Tanto que Sócrates tinha inimigos, e foi por eles condenado à morte.
- E por que hoje não se ensina filosofia por aí? – perguntou Juquinha.
- Deve ser porque não interessa aos amos da caverna. – Sócrates respondeu primeiro que Lúcia. – E se ensinarem, não vai ser do jeito prático da Lúcia, do jeito de quem faz o que fala, vai ser lá do jeito chato, querendo que a gente decore bobagens do tipo ‘onde nasceu Fulano’ e ‘em que ano morreu Sicrano’. A Lúcia ensina o que é importante, o que os filósofos realmente ensinaram.
- Na minha opinião – disse Lúcia – Sócrates e Platão falaram quase tudo o que era importante sobre o homem, seu comportamento, seus desejos, seus motivos. Eles praticamente esgotaram o assunto. Não sobrou muita coisa para os que vieram depois, só perfumaria. Muito filósofos famosos, que apareceram mais tarde, falaram muito sobre apenas um pedacinho da vida. Sócrates e Platão falaram muito sobre tudo.
- Porque você diz Sócrates e Platão, os dois juntos?
Porque, na verdade, Sócrates e Platão devem ser estudados juntos. Sócrates nada escreveu, porque achava que a escrita deixava a mente preguiçosa.
- Então ele nunca escrevia cartas e não tinha amigos em outras cidades.
- Era assim. Sócrates morreu aos setenta anos, quando Platão era um mocinho de 29 anos. Platão escreveu tudo o que se lembrava dos ensinamentos do mestre, escreveu textos em que havia um personagem chamado Sócrates e quando a gente lê não pode ter certeza, certeza mesmo, de que Sócrates dizia aquilo daquele jeito ou se aquele era o jeito de Platão entender o que ouvira do mestre.
- Pare, Lúcia, que ficou confuso. – disse Marquinho.
- Vamos dar um exemplo. Imagine, Marquinho, que eu contei a você a história dos três porquinhos e o lobo mau. Eu disse ‘o porquinho viu o lobo e correu’. Aí vai você repetir a história para o seu amigo e diz ‘o porquinho correu porque tinha medo do lobo’.
- Para mim, parece igual.
- Não é. Eu não disse que o porquinho estava com medo. O porquinho podia ter certeza de que corria mais rápido e estaria seguro de chegar em casa antes do lobo. Eu disse ‘ o porquinho correu’, o resto é o que você pensou.
- Então o que você está dizendo é que alguma coisa do que Platão colocou na boca de Sócrates era, na realidade, o que Platão pensava, e não o que Sócrates pensava.
- Exatamente – disse Lúcia – porque Sócrates não deixou nada escrito, tudo o que sabemos dele nos chegou de segunda mão, através de Platão ou de Xenofonte, que foi um outro discípulo de Sócrates. Também temos coisas escritas pelos inimigos de Sócrates, e aí já não temos grande interesse em ler, porque os inimigos não falariam bem dele, logicamente.
- Mas, eu não concordo com esta coisa de vida simples. Quero só ver um Sócrates viver nos dias de hoje sem televisão ,sem telefone, sem computador, sei, não...
- Eu vejo diferente. O telefone e o computador simplificam a vida da gente, economizam tempo e papel. Simplificar a vida não nos impede de utilizar o progresso. Simplificar a vida é fazer uma coisa de cada vez, escolhendo o que é mais importante e deixando as bobagens de lado. Eu já vi a vovó fazer mingau, fritar batatas, colocar a mesa, ao mesmo tempo em que falava ao telefone. Nesse dia ela queimou o dedo e quebrou uma xícara.
- É verdade, eu me lembro, estava muito afobada naquele dia. Estou aprendendo a ser mais organizada. A pressa é má conselheira, como diz o povo.
- Simplicidade é assim como prestar atenção em uma coisa de cada vez. Se eu for jogar futebol pensando em decorar a tabuada vou errar o gol e também não vou aprender aritmética.
Lúcia achou graça na comparação:
- Exatamente, Sócrates. Prestar atenção ao que se faz... dedicar-se a uma coisa de cada vez, de preferência as coisas importantes... aí os resultados são bons e a pessoa consegue fazer um gol. Sucesso! Sabe como se chama isso? Disciplina.
- Ih, palavrinha chata! – Marquinho torceu o nariz. – A diretora lá da minha escola buzina esta tal de disciplina em minha orelha todo dia.
- Pois o primo Sócrates aprendeu com a experiência. Ele se disciplinou sozinho porque queria marcar gols. A disciplina que vem de fora não funciona.
- Que história é esta de disciplina que vem de fora?
- É esta que você já conhece, Marquinho. É assim: ‘menino, olha o livro’; ‘menino, faz o exercício’; ‘menino, fica quieto’; ‘menino, copia a tabuada’. Uma pessoa fala estas coisas e você nem entende porque ela manda você fazer estas coisas, você faz por fazer e de qualquer jeito.
- É isso mesmo. Já o meu primo presta atenção na bola porque quer marcar o gol e isto é a tal disciplina que vem de dentro. Isso quer dizer que eu tenho de saber qual é meu gol.
- Isso! Qual é seu gol?
- Tenha dó, Lucinha! Eu inda sou muito pequenininho ainda, não sou apaixonado por nada ainda, como meu primo aí que é doido por futebol!
- Tem razão, aproveite as férias e seja pequenininho durante este mês inteiro, Marquinho! Até o fim do mês nós vamos descobrir juntos um jeito de você se apaixonar pelos estudos – sugeriu Lúcia – porque afinal você está na escola e não quer cortar cana quando crescer, ou quer?
- Eu não! Quero saber conversar e contar histórias tão bem quanto você!
Juquinha disse:
- Escute, Lúcia, se eu entendi direito. A filosofia é a arte do bem viver, procurar a sabedoria e praticar o que aprendeu para ser feliz. A vida simples ajuda a pessoa a prestar atenção nas coisas e escolher as que são boas de verdade em vez daquelas coisas que só são boas no começo e depois ficam ruins. E tem de ser pobre, porque o Sócrates vivia pobre.
Marquinho protestou na hora:
- Eu não ouvi nada disso! Eu não quero ser pobre, não!
- Não tem isso de pobreza, não, gente. Vou contar a vocês mais um pouquinho sobre a vida de Sócrates. Ele era amigo de Péricles, o político mais famoso de Atenas, de muitos artistas e governantes influentes e ricos daquela época. Sócrates recebia muitos convites para ir a festas e jantares na casa dessas pessoas importantes. Ele ia a essas festas, onde sua conversa era muito apreciada, ele ria, bebia dos melhores vinhos e comia dos mais deliciosos pratos como os demais convidados, apreciava a música e o canto, enfim, este não é o modo de vida de uma pessoa pobre, não é mesmo?
- Música e dança? – perguntou Marquinho.
Foi Juquinha que explicou:
- Naquela época eles não tinham aparelhos de som. Nas festas havia música tocada por músicos de verdade e cantores e dançarinos e provavelmente outros artistas, não era assim, Lúcia?
- Então Sócrates freqüentava a casa das pessoas importantes?
- Pois se ele ERA uma pessoa importante! Gente do mundo inteiro vinha para Atenas pra conhecer Sócrates. Na verdade, era ele o homem mais importante de Atenas e o mais famoso grego daquela época e de todas as épocas! – disse Lúcia – Já Platão nasceu rico, e não saiu por aí dando sua fortuna aos pobres para fazer bonito, porque ser filósofo é não depender do dinheiro e isto quer dizer que a pessoa sabe que as coisas mais valiosas da vida o dinheiro não compra: a amizade, a lealdade, a justiça, um lar, saúde, paz.
- Estou lembrando do que você falou antes sobre o deus dinheiro.
- Tem gente que acredita que dinheiro compra felicidade.
- Conheço alguns adultos que trabalham muitos dias viajando para fora da cidade e ficam longe dos filhos quase todo o tempo, e alguns têm casas com piscina que nunca usam.
- Lá na minha escola conheço uns meninos ricos que são criados por babás e levados para lá e para cá por motoristas particulares. Isto é muito triste.
- É, Lúcia, você tem razão em pegar pesado nesta questão do dinheiro.
- Vamos ser práticos, já que os gregos eram práticos. – sugeriu o vovô. - Vou perguntar a vocês: para que aprender filosofia, esta tal arte de bem viver?
- Para escolher as boas coisas da vida – responderam os meninos, juntos.
- E para que serve ter dinheiro? – provocou vovô.
- Para ter conforto! – falou Marquinho – Uma boa casa, comida gostosa, roupas bonitas, alguns doces e brinquedos, de vez em quando uma ida ao circo...
- Eu tenho tudo isso – afirmou vovõ – Estudei o que quis, escolhi uma profissão útil, trabalhei o suficiente, sem exageros, tenho o conforto que quero ter, uma boa reserva no banco e o meu maior tesouro são vocês, minha família.
- Vovô, então, teve a vida de um filósofo. – disse Lúcia – Do tipo grego, que pratica o que fala.
- Desta conversa de vocês – disse vovó – ficou claro para mim que as palavras mais importantes foram ‘como’ e ‘para que’.
- Essa eu não entendi, vovó. – falou Sócrates.
- Eu escutei com muita atenção – continuou vovó – Quando encontra algo importante na vida, uma pessoa tem de aprender duas coisas: ‘como’ aprender e ‘para que’ usar aquele conhecimento. É unir o útil ao agradável.
Quando falava, vovó gostava de usar ditados populares.
Neste momento a lua cheia saiu de trás das nuvens e iluminou o jardim. Os meninos correram para fora. Eles gostavam de procurar pererecas entre as flores da vovó.
Juquinha parou no meio do caminho, agitando as mãos e mostrando aos companheiros:
- Olhem nossas sombras! Somos gigantes enormes!
Porque as sombras dos meninos estavam compridas, tão compridas que se alongavam até o portão.
Vovó bateu palmas e pôs fim à brincadeira:
- Disciplina, meninos! Hora de dormir!
Marquinho percebeu que a ‘disciplina’ da vovó, suave como um carinho, vinha de encontro a seu desejo, pois Marquinho estava mesmo com muito sono.
E os meninos foram dormir e sonhar com as boas coisas da vida: doces, brinquedos, o carinho dos avós, a amizade dos primos e todos aqueles tesouros que a sabedoria ensina e o dinheiro não compra.